A História de um Rei que
Casou Com a Sabedoria Divina
 
 
Carlos Cardoso Aveline
 
 
 
Os líderes de Atlântida, ou Ker-Is, procuram escapar das ondas em cavalos
mágicos que se deslocam acima do oceano. Pintura de Évariste-Vital Luminais.
 
 
 
Era uma vez um rei chamado Gradlon, nome que significa ‘cheio de graça divina’, e ele governava a região de Cornouaille, na Bretanha hoje francesa. Um dia – inúmeros séculos atrás – ele planejou uma expedição militar até o reino de Lochlann, na atual Escandinávia, com o objetivo de conquistar novos territórios.”
 
Assim começa uma velha lenda do povo celta que narra simbolicamente a destruição de Atlântida e traz uma reflexão oportuna no século 21.
 
Cabe perguntar por que nenhuma civilização pode prosseguir depois que seu sistema de ética se desintegra. Que lições podemos retirar, hoje, da “lendária” destruição de Atlântida? Quais as causas internas da crise da nossa civilização, e como evitar maiores desastres?
 
“Gradlon preparou três navios de guerra e viajou para o norte no comando da sua frota. Chegando ao reino de Lochlann, os navios foram ancorados.  O rei e seus homens podiam ver um castelo magnífico situado no alto de uma montanha. ‘Temos de conquistar este castelo’, disse o rei a seus guerreiros, e deu ordem de ataque. Mas, uma após a outra, as tentativas de tomar o castelo foram inúteis. E o inverno chegou. Os soldados murmuravam. As baixas do exército eram pesadas. Não seria mais sábio voltar para a terra natal?”
 
Esta lenda foi objeto de estudo em Brasília nos anos 1990, durante um curso sobre sabedoria divina dado pelo teosofista francês Yves Marcel. Trata-se de um exemplo da transmissão oral de sabedoria dos povos antigos. Há numerosas versões da lenda de Gradlon. A maior parte delas foi distorcida e adaptada aos dogmas cristãos, mas sua essência permanece.
 
Entre os celtas havia três castas: druidas, guerreiros e trabalhadores manuais. A casta principal era formada pelos druidas, sábios e magos encarregados de preservar o conhecimento eterno. Em uma assembleia, contou Yves Marcel, o rei só podia falar depois de receber autorização do druida. Na casta dos druidas havia, além dos druidas propriamente ditos, os bardos e os ovatos. Os ovatos eram estudiosos da teoria, e os bardos, ou poetas, tinham a missão de colocar a sabedoria eterna em forma de versos. A métrica destes poemas tinha uma rima e outras regras tão restritas que era impossível perder uma única palavra do texto. A memorização funcionava com eficácia. Assim, as lendas atravessavam os séculos, e ensinamentos do tempo da destruição de Atlântida chegaram até nós, como no caso desta lenda que estou recontando.
 
“Diante dos murmúrios e questionamentos dos guerreiros, o rei tomou uma decisão clara e nobre. Disse aos seus homens que eles tinham razão. ‘Voltem à Bretanha, esta é a minha ordem’, afirmou. ‘Quanto a mim, ficarei e atacarei o castelo sozinho. Há coisas que só um rei pode fazer, e que é preciso fazer sozinho’.”
 
Os guerreiros embarcaram nos três navios e começaram a viagem de volta, deixando o seu rei na terra de Lochlann. [1]
 
Certa noite, diz a lenda, Gradlon caminhava pela praia, perguntando-se como poderia entrar no castelo, quando percebeu uma presença atrás de si. Voltou-se, e lá estava, a poucos metros, aparentemente indefesa, a mulher mais bonita que ele jamais havia visto. “Quem é você?”, perguntou Gradlon.
 
“Meu nome é Melgven (palavra que significa ‘grande brancura’)”, respondeu ela. “Você atacou o meu castelo inutilmente. Eu o teria dado a você de boa vontade, se tivesse pedido por ele da maneira correta.”
 
“Por que diz isso?”, perguntou o rei.
 
“Porque amo você”, foi a resposta. “Quero casar com você, mas se quiser ser o marido de uma deusa, você terá de prometer nunca contradizer-me, nem questionar minhas decisões”.[2]
 
Num plano coletivo, Gradlon simboliza o ser humano da civilização atlante. Melgven é a sabedoria que ele busca conquistar, e que não pode ser obtida à força ou através de métodos grosseiros, e sim apenas através da “maneira correta”, isto é, por sintonia interior.
 
Gradlon fez a promessa e casou com Melgven. Votos religiosos e compromissos espirituais solenes estão presentes em todas as civilizações e culturas. O rei Gradlon jurou servir a Sabedoria – sua esposa – e nunca questionar as suas decisões. E, de fato, o casamento místico do peregrino da sabedoria com a consciência universal é tema constante das tradições esotéricas.
 
“Depois de alguns meses de grande felicidade, Melgven ficou grávida”, conta a lenda. A bem-aventurança ocorre nos níveis superiores de consciência. A gravidez de Melgven simboliza um contato maior com a vida material.
 
“Se tivéssemos um navio, poderíamos ir para o reino de Cornouaille, onde meus súditos me aguardam”, disse Gradlon.
 
“Temos coisa melhor que navios”, respondeu Melgven. “Temos meu cavalo mágico, Morvark. Com ele podemos navegar sobre as ondas. [3] De fato, chegou a hora de você voltar a seu reino. Vamos montar na garupa de Morvark, que darei a você como presente de despedida, porque só posso acompanhá-lo até parte do caminho.”
 
Gradlon não gostou da ideia de separar-se da esposa, mas havia prometido obediência e não pôde fazer nada. Os dois galoparam sobre as ondas velozmente até encontrarem a frota de Gradlon, que estava perdida em um nevoeiro, dando voltas sobre si mesma.
 
Morvark subiu a bordo levando seu casal de cavaleiros e o nevoeiro mágico se desfez. A viagem de volta para Cornouaille, o reino de Gradlon, foi retomada. Pouco tempo depois, Melgven deu à luz. Nasceu uma menina linda, à qual foi dado o nome de Dahud (palavra que significa “boa mágica”). Em seguida, para desespero de Gradlon, Melgven morreu e seu belo corpo teve que ser lançado ao oceano.
 
O mar, aqui, pode significar a consciência universal, aquilo que uma cultura em processo de materialização acaba por esquecer. No caminho do contato crescente com o mundo externo, uma civilização perde e lança ao mar do esquecimento a sabedoria eterna. Só os filhos da sabedoria permanecem vivos. E eles nem sempre são fiéis, porque vivem imersos no mundo material com todas as suas ilusões.
 
Gradlon não conseguiu recuperar-se da perda da esposa. Passou a beber. Quando os ministros vinham pedir sua opinião sobre assuntos de Estado, ele respondia sempre:
 
“Façam como acharem melhor”.
 
Enquanto isso, Dahud crescia. Bela como a mãe, a menina, no entanto, era perversa. Desobedecia sistematicamente aos ensinamentos de Kaurintin, a autoridade espiritual de Cornouaille. Sabedora de que era uma semideusa, dotada de poderes mágicos, Dahud passou a comportar-se como uma verdadeira peste. Seu pai, deprimido e bêbado, fazia todas as suas vontades, porque Dahud era tão linda como sua esposa havia sido. [4]
 
Um dia, Dahud pediu ao rei Gradlon que construísse uma cidade especial, onde o sumo-sacerdote Kaurintin não pudesse mandar. E a cidade foi construída sobre um gigantesco aterro, protegido das águas do mar por um conjunto de diques. Um sistema de comportas era aberto e fechado para que navios pudessem entrar e sair do porto da cidade.
 
A nova metrópole passou a ser a maior cidade do mundo. Seu nome era Ker-Is, que significa “cidade baixa”. Dahud, com seus poderes mágicos, criou uma legião de animais de aspectos monstruosos que eram capazes de realizar todas as tarefas manuais. Agora as pessoas do reino, que já se concentravam na cidade de Is, podiam dedicar-se a não fazer nada, ao lazer, à futilidade, à bebida, e ao sexo sem amor. Era a utopia da animalidade humana.
 
A cada noite, Dahud organizava um baile para as pessoas importantes da cidade. Todos andavam fascinados pela beleza física de Dahud. Não havia cidadão que não estivesse disposto a fazer qualquer coisa para ter uma noite de amor com ela.
 
No final do baile, depois da última dança, ela convidava discretamente um cavalheiro para ir até o seu quarto de dormir. Os dois amantes tinham então uma noite exuberante de prazer sexual. Pouco antes do amanhecer, Dahud fazia com que o homem fosse assassinado, para evitar que houvesse testemunhas das suas ações.
 
Os habitantes da cidade de Is estavam tão corrompidos que não procuravam investigar o que acontecia com os cidadãos desaparecidos. Não queriam comprometer-se. Buscavam o prazer de curto prazo e não desejavam saber de coisas como ética, verdade, ou sinceridade, embora fossem capazes de usar estas palavras frequentemente.
 
Certa vez, um homem desconhecido e de presença fisicamente luminosa apareceu no grande baile do castelo de Dahud. Ninguém sabia de onde havia vindo. Dahud, curiosa, convidou-o para sua cama. Ele recusou amavelmente, e ela respondeu:
 
“É uma ordem”.
 
“Não recebo ordens de nenhum mortal”, disse ele.  
 
Aquela madrugada, ninguém foi assassinado. Na noite seguinte, o mesmo desconhecido apareceu outra vez no baile. Convidado para ir para o quarto de dormir de Dahud, ele recusou, e Dahud “sentiu, pela primeira vez, que o amava”.
 
Na terceira noite, diz a lenda, havia um vento terrível. As comportas que protegiam a cidade das águas foram fechadas com uma chave especial, que ficou em poder do rei Gradlon.
 
Nesta lenda, Dahud simboliza a magia degenerada, o mau uso do poder do pensamento, as potencialidades humanas colocadas a serviço do egoísmo. Cada cidadão que tinha, simbolicamente, “uma noite de amor com ela” – isto é buscava a magia para fins egocêntricos – morria espiritualmente na madrugada seguinte. Um mensageiro dos deuses rejeitou a armadilha e colocou em xeque toda a situação. Naquele momento, o carma estava maduro e a ilha inteira se aproximava do fim.
 
A lição não se aplica apenas à experiência da Atlântida, mas é válida na civilização atual. Ou a humanidade de hoje põe um fim ao crescimento do egoísmo, ou o egoísmo acabará com ela.
 
Um mestre de sabedoria anunciou no século 19 que quando a humanidade que conhecemos houver alcançado o ponto mais alto da intelectualidade física, tornando-se incapaz de elevar-se em mais nada em seu próprio ciclo, o seu avanço em direção à maldade absoluta será interrompido (como no caso dos seus antecessores, entre eles Atlântida) por um cataclismo de proporções adequadas. Deste modo será destruída a civilização materialista. [5]
 
O mistério humano do século 21 é a equação secreta do preço a pagar pela inevitável substituição da ignorância egoísta pela sabedoria do altruísmo e da ética impessoal.
 
“Dahud”, diz a lenda, “perguntou ao desconhecido por que não desejava amá-la.”
 
“Por que você não me ama”, respondeu ele.
 
“E como posso provar meu amor?”, perguntou Dahud.
 
“Você pode provar seu amor entregando-me a chave secreta das comportas que protegem a cidade”, disse o desconhecido.
 
Dahud foi até o seu pai. Ele estava bêbado, como sempre, havendo perdido a vigilância e a atenção diante da realidade. Dahud buscou nos seus bolsos e agarrou a chave das comportas, entregando-a ao desconhecido luminoso.
 
O mensageiro divino disse a Dahud:
 
“Agora você provou que tem algum amor por mim. Vá para o alto da torre mais alta da cidade. De lá você enxergará algo que nunca viu antes.”
 
O desconhecido abriu as comportas que protegiam a cidade da água do mar, e o carma das ações passadas, há muito tempo esquecido, inundou aquela região inteira. Quase todos se afogavam. Três das exceções eram, Gradlon, que neste momento decisivo havia recuperado o bom senso e montara seu cavalo mágico; Kaurintin, o sábio altruísta, que cavalgava seu próprio cavalo voador; e Dahud, isolada no ponto mais alto da torre de Is. 
 
A população da “cidade baixa” morria em meio ao pânico, junto com os animais monstruosos encarregados dos trabalhos manuais. Cavalgando Morvark, presente de sua esposa Melgven, o rei Gradlon podia ver a catástrofe em seu conjunto. Ao longe soou a voz aflita de Dahud:
 
“Socorro, papai!”
 
O mago Kaurintin cavalgava ao lado do rei e deu-lhe uma ordem:
 
“Deixe-a morrer.”
 
Mas Gradlon não podia permitir que sua filha – a degeneração do conhecimento separado da ética – desaparecesse nas águas sem sequer uma tentativa de salvá-la. Aproximou-se da torre onde Dahud gritava e disse-lhe:
 
“Salte na garupa do meu cavalo.”
 
Dahud saltou e algo estranho ocorreu. Sob o peso do egoísmo dela, o cavalo voador começou a afundar. Com uma autoridade indiscutível na voz, Kaurintin gritou ao rei:
 
“Em nome dos céus, Gradlon, se quiser sobreviver, livre-se do demônio que está sentado atrás de você!”
 
Mas Kaurintin sabia que as palavras seriam inúteis. Gradlon não teria coragem de lançar sua filha às águas. Usando seu bastão sagrado, o mago deu um golpe definitivo em Dahud, fazendo-a mergulhar sob as ondas. Morvark recuperou-se e voltou a galopar acima das águas. Os dois homens prosseguiram viagem até terra firme. 
 
“Anos depois”, diz a tradição, “apareceu nas águas rochosas da região céltica uma linda sereia cujas canções são de uma tristeza tão grande quanto sua beleza.” Assim termina a lenda de Ker-Is.
 
Esta narrativa celta reflete no plano das tradições populares a trajetória de todos os processos começados sob inspiração divina que, com o correr do tempo, entram em degeneração.
 
As três figuras femininas da história – Melgven, Dahud e finalmente a sereia, simbolizam a feminilidade divina, a feminilidade pervertida, e a feminilidade que renasce pela sublimação. O desconhecido de presença brilhante, que muda o curso da história, simboliza o homem sábio. Os tolos sistematicamente assassinados por Dahud representam a masculinidade podre de uma sociedade decadente. Gradlon, casado com Melgven, vive o amor responsável que gera vida.
 
Assim como na remota experiência da civilização atlante, preservada no folclore dos celtas, a sociedade materialista atual sofre de uma crise e uma decadência que resultam de dois fatores. Um deles é a falta de contato consciente com nossas origens divinas. O outro é a falta de percepção do futuro sagrado da evolução humana.
 
Melgven, a luz branca da sabedoria sem limites, morreu ao dar à luz a criança da civilização materialista, a bela mas perversa Dahud.  No entanto a ética superior da consciência humana, a percepção da fraternidade como lei natural, a mente aberta e a visão espiritual do mundo estão presentes hoje como Kaurintin estava presente em Is.
 
No tempo atual como em todas as épocas, a ética é o cavalo mágico que permite navegar acima das ondas cármicas da cegueira egoísta. Cabe a cada um construir ou obter o seu Morvark, o seu veículo de bom carma, e ajudar no processo de despertar de outras almas.
 
Quando chegam as águas da renovação coletiva, a autoridade ética legítima age na hora certa para preservar o essencial. Gradlon simboliza o cidadão moderno, desnorteado pela morte da sua esposa divina – a sabedoria – e mergulhado na decadência do mundo materialista. Ele pode recuperar o bom senso no momento decisivo.
 
NOTAS:
 
[1] A coragem moral exige que se faça a coisa certa, sem preocupação com o apoio que se receberá ou não. Na experiência iniciática, o iniciado enfrenta sozinho o desconhecido.
 
[2] A iniciação é um renascimento interior. Embora preserve sua independência fundamental, aquele que será iniciado em um novo nível de consciência não impõe condições ao iniciador.
 
[3] Cavalos mágicos simbolizam aeronaves.  A lenda de Gradlon e outras lendas de Atlântida narram a história da quarta raça-raiz da humanidade, ou “quarta humanidade”, de acordo com a nomenclatura teosófica. Escrevendo sobre a quarta raça-raiz em “A Doutrina Secreta”, Helena Blavatsky afirma que havia “veículos aéreos” (air-vehicles) naqueles tempos. Veja “The Secret Doctrine”, H.P. Blavatsky, Theosophy Co., volume II, pp.  426 e 427.
 
[4] No caminho da decadência moral de uma civilização, os erros inicialmente involuntários (a paralisação psicológica de Gradlon devido a tristeza) abrem caminho mais tarde para os erros voluntários e deliberados, que o comportamento de Dahud simboliza. Portanto é preciso combater e evitar os erros involuntários, cuja fonte é o subconsciente.
 
[5] Veja a metade inferior da página 120 do volume dois de “Cartas dos Mahatmas”, Editora Teosófica, Brasília. O trecho pertence à Carta 93-B.
 
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Uma versão inicial do artigo “Antiga Lenda Celta Sobre Atlântida” foi publicada na edição de setembro de 1996 da revista brasileira “Planeta”, da Editora Três, pp. 25 a 28, sob o título de “A Destruição de Atlântida”.
 
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Em setembro de 2016, depois de cuidadosa análise da situação do movimento esotérico internacional, um grupo de estudantes decidiu formar a Loja Independente de Teosofistas, que tem como uma das suas prioridades a construção de um futuro melhor nas diversas dimensões da vida.
 
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