A Prática do Respeito Cura a
Doença do Apego ao Ódio e ao Sofrimento
 
 
Carlos Cardoso Aveline
 
 
 
Ao mostrar Jesus Cristo livre da crucificação,  o monumento
do Corcovado aponta para o próximo passo do aprendizado humano
 
 
 
Pode-se definir que masoquismo é o culto e o apego à própria dor como fonte de satisfação consigo mesmo, enquanto sadismo é a busca da dor alheia como motivo de prazer pessoal.
 
Os dois fenômenos  são inseparáveis.
 
O sádico adota pose de vítima para enganar e dominar o outro através do sentimento de culpa, ou para pegá-lo desprevenido e derrotá-lo.
 
Os sentimentos do masoquista também são contraditórios.
 
Além de fazer o papel clássico e preferencial de vítima, o masoquista com frequência assume a atitude de rebelde. Neste caso ele “procura causar dor no outro” com o objetivo subconsciente de ser derrotado e  castigado, voltando então ao velho sofrimento com o qual se identifica no plano das emoções.
 
Quando sofremos, um reforço do sentimento de autoestima é inevitável como reação emocional à dor. O masoquismo consiste no exagero artificial deste sentimento de amor-próprio compensatório.
 
Em outras palavras, a autoestima é saudável. Um grau de pena de si mesmo é correto, quando sofremos. Mas o apego a uma autoimagem de sofredor e derrotado, e a busca subconsciente de mais sofrimento para confirmar esta imagem e contemplar com prazer a própria dor, é masoquismo.
 
Por sua vez, o sadismo é uma forma de cegueira na qual o indivíduo não só experimenta uma satisfação no sofrimento alheio e um prazer na derrota dos outros, mas também busca ativamente provocar esse sofrimento, tendo como único benefício o prazer doentio de ver a dor alheia.
 
Todo sofrimento intenso possui um certo poder hipnótico. Em consequência disso, pode eternizar-se indevidamente na forma da busca de vingança, ou na forma de apego emocional à dor e à imagem de si mesmo como “alguém que sofre”.
 
O cristianismo medieval escolheu  adorar a imagem de Jesus sendo torturado na cruz. A visão do deus personalizado, espancado e sangrando lentamente até a morte, “ensina” ao devoto a lição falsa segundo a qual ele deve agarrar-se à sua própria dor e cultuá-la.
 
Os dois aspectos deste desequilíbrio atuam em unidade. A igreja que se identifica com o deus masoquista foi sádica com os devotos que considerava rebeldes, e com aqueles que pertenciam a outras religiões. Não só os condenava ao inferno depois da morte: torturava-os e matava-os com técnicas e instrumentos sofisticados, em nome do deus da bondade.
 
Os prisioneiros deviam morrer uma morte lenta, em meio a gritos de dor, para maior glória dos cardeais. As execuções em praça pública por parte da Santa Inquisição da Igreja Católica e Apostólica são uma expressão central da religiosidade autoritária. A igreja que se humilhava diante de Deus todo-poderoso tinha um intenso prazer ao matar e torturar em nome do Mestre do Amor. Fazia isto em público, hipnotizando exemplarmente a população com os seus  rituais de violência contra seres indefesos.
 
Entre as expressões não-religiosas da prática do sadismo estão os massacres dos povos indígenas e dos negros, assim como os açoitamentos de escravos na praça central das cidades, durante a vida colonial das Américas e da África.
 
A Inveja e a Crueldade Sutis
 
Embora as formas externas do autoritarismo mudem, os padrões energéticos do desrespeito prosseguem. Os cidadãos precisam primeiro reconhecer os hábitos do culto ao sofrimento, para depois verem-se livres da atitude doentia. Existem versões não-sangrentas e “modernas” desta forma distorcida de satisfação. Vejamos alguns exemplos.
 
No futebol e em outros esportes, é saudável desejar a vitória: o sadismo começa quando o prazer de ver a derrota alheia passa a ter um peso próprio.
 
Na política, é correto desejar a vitória do partido a que se pertence. O sadismo acontece na medida em que surge o ódio ao adversário, e o prazer da derrota do  outro se torna tão importante quanto, ou mais forte que, a satisfação da vitória buscada.  Deste modo é abandonada a ética e o respeito é deixado de lado. A mentira passa a ser vista como normal e até patriótica,  sendo condenável e devendo ser combatida apenas quando praticada pelos adversários.
 
Na vida familiar, a criança pode fazer-se de vítima e causar sofrimento tanto nos pais como nos irmãos. A criança mimada chora, simulando sofrimento, para castigar os adultos. E, evidentemente, as crianças são inúmeras vezes alvo de práticas e sentimentos em que há sadismo e masoquismo combinados.
 
No decadente mundo moderno, o abuso contra a criança é frequente e ocorre de formas tanto sutis como brutais. A verdade é que educar crianças e cuidar bem delas é das tarefas mais sagradas que há: elas simbolizam o futuro.
 
O sentimento de inveja e o desejo de vingança não estão ausentes da caminhada espiritual.
 
Nos grupos esotéricos e associações universalistas, a diferença de opinões pode provocar humilhação e crueldade sutis. O sadismo começa a dominar quando a esperança de ver o interlocutor  na situação de “errado” é maior do que a vontade de encontrar a verdade isenta. Cada vez que alguém pretende ser mais sábio ou mais santo que o seu colega de caminhada espiritual, temos um terreno fértil para o surgimento do prazer de observar a derrota do irmão, e para a dor ao ver que um colega de aprendizado se purifica e vivencia mais de perto o  mundo  sagrado.
 
Se o apego a uma opinião sobre este ou aquele aspecto do ensinamento desperta a vontade de  mostrar como “burro” e “errado” aquele que pense diferente, temos uma espécie de ignorância que experimenta especial prazer na derrota alheia. E quando isso acontece, encontrar a verdade pode ser mais doloroso do que prazenteiro. A verdade passa a ser falsificada e distorcida na busca do prazer imaginário de ver alguém desempenhar o papel de “errado”. O “dono da verdade” foge dos seus medos. Trata de sentir-se seguro convencendo-se e tratando de convencer os outros de que suas opiniões são “infalíveis”.
 
Na política, nas relações sociais, na atividade profissional, e mesmo nas relações familiares, o sadismo e o masoquismo constituem as duas faces da moeda do sofrimento psicológico desnecessário: a face expansiva e a face introvertida.
 
Tanto o sádico como o masoquista mentem e enganam a si próprios e aos outros. Suas metas emocionais “subjetivas” são maiores e mais fortes do que o seu respeito pela verdade.
 
Na guerra, como nas disputas políticas, o prazer de destruir e humilhar o outro é não só doentio, mas também elimina o desejo saudável de obter uma paz justa e uma harmonia equilibrada nas relações sociais.
 
Apenas em uma democracia madura a vitória política é vivida com moderação. Nestas condições, a derrota pode ser  experimentada sem abalo na autoestima. O cidadão  espiritualmente ignorante deseja ser “melhor do que os outros”, ou, alternativamente, se vê como inferior e como “nascido para sofrer”. Os dois caminhos levam ao sadomasoquismo. O indivíduo que escuta sua alma busca  o equilíbrio: ele respeita a si mesmo, assim como respeita os outros.
 
Cabe lembrar que, para o bom praticante de artes marciais clássicas como o judô e o aikidô, a meta nunca é a humilhação do outro, mas o restabelecimento do justo equilíbrio entre os seres.
 
Ganhar e perder são dois aspectos saudáveis da aprendizagem, no bom futebol e na arte marcial corretamente praticada. Aprender a cair e a levantar-se é uma lição básica. O guerreiro da sabedoria é solidário com os seus semelhantes. Ele promove a justiça e luta contra as causas da dor desnecessária.
 
É preciso estar em boas relações consigo mesmo para encontrar a paz.  E cabe ter um grau razoável de independência em pensamentos e emoções, para que a postura pessoal seja estável.
 
No âmbito familiar, assim como na dimensão social e política, as mutáveis relações de “amor e ódio” ganham força quando há uma dependência mútua excessiva e uma incapacidade de pensar.
 
A lisonja e a bajulação ocorrem nas relações interpessoais, na família, nos locais de trabalho e na política. O povo bajula seus líderes políticos e os líderes políticos bajulam o povo, especialmente nos períodos eleitorais.
 
A população honesta e trabalhadora pode ver como um deus o líder populista autoritário e desonesto. Os seguidores de uma ideologia cega renunciam infantilmente à sua independência para adorar o oportunista e têm um especial prazer em odiar a quem quer que se oponha a ele. Assim, alimentam a ilusão de, sendo insignificantes como pessoas, pertencerem a algo supostamente grandioso.  Pensar dói, pensar dá trabalho e eles preferem não pensar. Vivem amor e ódio intensamente, sem abrir os olhos.
 
“A forma passiva da união simbiótica”, diz Erich Fromm, “é a da submissão, ou, se usarmos um termo clínico, a do masoquismo. A pessoa masoquista foge ao insuportável sentimento de isolamento e separação tornando-se   parte e porção de outra pessoa, que a dirige, guia, protege; que, em suma, é sua vida e seu oxigênio. O poder daquele a quem alguém se submete é expandido, trate-se de uma pessoa ou de um deus; é tudo, e o submisso nada, exceto naquilo em que é parte dele. Como   parte, é parcela da grandeza, da força, da certeza. A pessoa masoquista não tem de tomar decisões, não precisa assumir quaisquer riscos; nunca está só – mas não é independente; não tem integridade; ainda não nasceu de todo.” [1]
 
Nas relações humanas saudáveis, há um equilíbrio entre interdependência e autorresponsabilidade. 
 
A cooperação saudável necessita de graus importantes de autonomia. A capacidade de pensar por si, exercida tanto individual como coletivamente, impede os comportamentos patológicos e os extremos do ódio e da devoção cegos.
 
Para compreender a base de fenômenos como o “autoritarismo político de massas” e o “ódio violento aos dirigentes políticos”, cabe examinar os padrões emocionais envolvidos.
 
A estrutura da família e das relações pessoais reflete a estrutura psicossocial do país em que vivemos, e vice-versa. O carma é um só e tem infinitas ramificações. Na complexa interação entre todos, os eus superiores ou almas espirituais enfrentam o peso morto da ignorância acumulada.  
 
O sadomasoquismo é a combinação silenciosa da ignorância-que-grita com a ignorância-que-chora; e surge da interação constante da ignorância-que-odeia com a sua irmã gêmea, a ignorância-que-faz-lamentações.
 
A sabedoria avança pelo caminho do meio. Ela constrói criativamente aquilo que é bom, belo e verdadeiro. O cidadão sensato tem espírito crítico e não o usa para buscar o prazer sádico de falar dos erros dos outros.  Ele utiliza o espírito crítico para afastar-se do erro e para avançar no caminho correto na direção do contentamento durável, que não produz derrotados.
 
O indivíduo equilibrado não usa de lamúrias para atribuir falsamente a sua dor a causas externas, mas elimina em primeiro lugar sua própria ignorância, estabelecendo um exemplo para que outros façam o mesmo.
 
Quando um povo se decepciona com os seus dirigentes, cabe à comunidade toda aprimorar a sua ética, fazendo por merecer dirigentes melhores. O ódio não leva a lugar algum. O autoconhecimento e o amor à verdade eliminam as causas do sofrimento.
 
Compreendendo o Processo da Ignorância
 
O capítulo primeiro do Dhammapada budista alerta contra o círculo vicioso da agressão mútua:
 
‘Ele me desrespeitou, ele me bateu e dominou, e depois me roubou’ –  quem expressa tais pensamentos amarra sua mente à intenção de vingar-se. Em tais pessoas o ódio não cessa.”
 
‘Ele me desrespeitou, ele me bateu e dominou, e depois me roubou’ –  em quem não expressa tais pensamentos, o ódio cessará.
 
Nesse mundo a inimizade nunca é eliminada pelo ódio. A inimizade é eliminada pelo amor. Essa é a Lei Eterna.” [2]
 
Viver à altura da sabedoria antiga requer autoconhecimento. O estudante deve construir e deixar que se consolide em si um novo sentido de identidade.
 
Nos primeiros versos do capítulo 15, o Dhammapada transmite a lição do desapego diante dos círculos viciosos de competição, frustração e agressão mútua:
 
“Devemos viver, pois, livres do ódio e felizes entre os que odeiam. Entre os homens que odeiam, que nós vivamos livres do ódio.”
 
E ainda:
 
“Devemos viver, pois,  livres da doença da cobiça e felizes entre os que sofrem desta doença. Entre os homens que têm a doença da cobiça, que vivamos livres desta doença. Devemos viver com felicidade, pois, nós que nada possuímos. Vivamos como os Seres Iluminados, alimentados pelo contentamento.”
 
No mesmo trecho o Dhammapada aborda o hábito de apegar-se ao papel de vítima, ou de algoz dos outros. Para tornar a ideia mais clara em linguagem moderna, coloco algumas palavras entre colchetes, em  itálico:
 
“A vitória [egoísta] cria o ódio; os derrotados permanecem no sofrimento; mas o homem tranquilo vive com felicidade, sem dar atenção a vitória [egoísta] ou derrota [pessoal].”
 
Rompendo os Círculos Viciosos
 
Todos os aspectos da vida estão interligados.
 
A luta pela honestidade na política não deve ter como ponto central apenas o combate contra o crime organizado entre dirigentes públicos, embora esta meta seja da maior importância.
 
É preciso priorizar a construção saudável da ética, da boa vontade e do sentido de comunhão. A tarefa criativa abrange todas as relações sociais. Começa na família, nos pequenos grupos e na comunidade local, e alcança os vários níveis do poder parlamentar, do poder judiciário e do poder executivo.
 
Uma sociedade policial, ou policialesca não escapa do círculo vicioso da acusação mútua e do pensamento negativo, em que ocorre a combinação de masoquismo com sadismo.  
 
A violência verbal tende a inspirar a agressão física e, no plano dos sentimentos, o desespero. Há forças políticas que se alimentam da histeria individual e coletiva. Algumas ideologias distorcidas substituem o ato de pensar sobre o bem da comunidade por palavras-de-ordem, por slogans e por mobilizações que estimulam deliberadamente o rancor e a intolerância. Ao lado disso, adotam como norma a adoração cega dos seus dirigentes, os quais, por aparente casualidade, são corruptos.
 
O ódio, o medo, o sadismo e o masoquismo são formas centrais de ignorância, e Erich Fromm escreveu:
 
“Num contexto religioso, o objeto da adoração é chamado ídolo; num contexto secular de relações de amor masoquista, o mecanismo essencial, o da idolatria, é o mesmo.”
 
A mãe pode adorar masoquistamente o seu filho mimado, para o qual não há limites, e que pensa que todos ao redor devem fazer suas vontades.  Ou também pode ser excessivamente rigorosa. Em alguns casos há mães que combinam o excesso de rigor com o excesso de carinho. Na relação correta entre pais e filhos, prevalece o sentimento de responsabilidade e dever de uns para com os outros, e os sentimentos não são arrastados por ondas cegas de apego ou rejeição.
 
No casal e na relação entre irmãos, o rancor, a submissão e o ciclo vicioso da agressão sutil ou física são igualmente possíveis. Os atos de violência doméstica não são raros no mundo moderno. Estes fatores microcósmicos da dor se relacionam com o contexto cultural e político mais amplo. A família tem uma relação inegavelmente profunda com a comunidade e o conjunto de instituições sociais em que se insere.
 
Erich Fromm prossegue:
 
“A relação masoquista pode-se misturar com o desejo físico, sexual; neste caso, não é só uma submissão de que participa o espírito de alguém, mas também todo o corpo. Pode haver submissão masoquista ao destino, à enfermidade, à música rítmica, ao estado orgíaco produzido por drogas ou sob transe hipnótico: em todos esses exemplos a pessoa renuncia à sua integridade, torna-se o instrumento de alguém ou de algo fora dela própria; não precisa de resolver o problema de viver por meio da atividade produtiva.” [3]
 
Atividade produtiva, na nomenclatura de Fromm, é a atividade construtiva e criativa do indivíduo que pensa por si mesmo e toma decisões próprias.
 
Um país psicologicamente “produtivo” é uma comunidade em que a meta central está na construção recíproca do bem-estar. Nela, a projeção neurótica de todos os erros humanos na figura de bode expiatório dos seus adversários políticos está fora da agenda dos diversos setores e escolas de pensamento.
 
Os meios de comunicação social cumprem um papel importante. Quando o jornalismo é dominado pela busca obsessiva do lucro, ele passa a explorar aspectos doentios do mundo emocional do país para ter mais audiência e obter mais poder. Há neste caso uma relação sadomasoquista entre as empresas concorrentes e com o público. A longo prazo todos saem perdendo.
 
Na arte, nos espetáculos culturais e na televisão, sempre é possível estimular e explorar as emoções depressivas típicas do egocentrismo, ou apontar para a cura através da prática da boa intenção e do respeito ao diálogo.
 
A Fusão Simbiótica
 
Erich Fromm chama de “fusão simbiótica” o tipo de união entre pessoas em que a liberdade e a responsabilidade individuais são suprimidas.  Esta ideia tem importância fundamental em teosofia.
 
O dever do líder espiritual é respeitar e aumentar, não reduzir, o sentido de responsabilidade e independência dos indivíduos. O sadismo e o masoquismo começam quando não existe um equilíbrio sensato entre as diversas autonomias, tanto na vida interpessoal como na vida pública.
 
O líder populista corrupto imita o rei Luís da velha França e pensa:
 
“O Estado sou eu, o país sou eu”.
 
E passa a se comportar como se fosse o dono da nação.
 
O senador, o deputado, o ministro e o governador pensam que estão acima da lei, quando vivem uma “fusão simbiótica” entre os seus interesses pessoais e os seus deveres como figura pública. Na verdade, estão psicologicamente adoentados. Esquecem que devem ser úteis a seu país, e não vampiros da comunidade. O mesmo pode ocorrer no âmbito familiar ou no local de trabalho.
 
Fromm escreve:
 
“A forma ativa da fusão simbiótica é a dominação, ou, para empregar o termo psicológico correspondente ao masoquismo, o sadismo. A pessoa sadista quer escapar da sua solidão e de sua sensação de encarceramento, fazendo de outra pessoa uma parte, uma parcela de si mesma. Expande-se e valoriza-se incorporando outra pessoa, que a adora.”
 
O indivíduo “dominador” é no fundo um medroso que esconde sua falta de segurança psicológica procurando vampirizar outras pessoas ou a comunidade.  O equilíbrio e o respeito exigem coragem, e Fromm prossegue:
 
“A pessoa sadista depende tanto da pessoa submissa quanto esta daquela; uma não pode viver sem a outra. A diferença só está em que a pessoa sadista ordena, explora, fere, humilha, e a masoquista é mandada, explorada, ferida, humilhada. Tal diferença é considerável num sentido realista; num sentido emocional mais profundo, a diferença não é tão grande quanto o que ambas têm em comum: fusão sem integridade.” [4]
 
Um indivíduo íntegro escuta sua consciência e é responsável por si. Devido ao fato de que está em contato com sua alma espiritual, ele deseja o bem.
 
O indivíduo que não escuta sua consciência, por outro lado, age como escravo de sentimentos alternados de dor e prazer, submissão e dominação. Adolf Hitler, por exemplo, foi um sádico, mas teve um aspecto masoquista e acabou por destruir a si próprio e ao seu país.
 
O mesmo pode acontecer com imitadores mais recentes da proposta histérica de Hitler. Eles com frequência preferem o prejuízo e a destruição do seu país, sempre que não podem dominar a nação e submetê-la ao seu domínio.  “Quanto pior, melhor”, pensam eles.
 
Fromm explica:
 
“…Não é surpreendente verificar que normalmente uma pessoa reage tanto da maneira sadista como da masoquista, de modo geral para com objetos diversos. Hitler reagia primordialmente de maneira sadista para com o povo, mas masoquistamente para com o destino, a história, o ‘poder mais alto’ da natureza. Seu fim – o suicídio em meio à destruição geral – é tão característico quanto o foi seu sonho de sucesso, de dominação total.” [5]
 
Em contraste com a irresponsável “união simbiótica”, o amor maduro e sensato é a união “sob a condição de preservar a integridade própria, a própria individualidade”, afirma Erich Fromm.
 
E ele acrescenta algo que é válido tanto na vida individual como na vida pública:
 
O amor é uma força ativa no homem; uma força que irrompe pelas paredes que separam o homem de seus semelhantes, que o une aos outros; o amor leva-o a superar o sentimento de isolamento e de separação, permitindo-lhe, porém, ser ele mesmo, reter sua integridade. No amor, ocorre o paradoxo de que dois seres sejam um e, contudo, permaneçam dois.” [6]
 
Na vida pública, o amor à comunidade e ao país é também um paradoxo.
 
A diversidade de ações e pensamentos pode ser grande. Ao mesmo tempo, há uma união em torno do que é fundamental.
 
A combinação entre diversidade e respeito é um paradoxo vivo: a administração do contraste é difícil, complexa, e ocorre de modo necessariamente imperfeito. A atitude sensata aceita a imperfeição, mantém o equilíbrio, estimula ações moderadas, e trabalha construtivamente para o aumento da sabedoria comum.
 
A Compaixão é uma Lei da Natureza
 
A atitude humana diante do sofrimento será correta ou incorreta conforme o nível de consciência desde o qual a dor é vista e experimentada.  
 
Para o egoísta, o seu próprio sofrimento é o drama maior da história da humanidade, enquanto o sofrimento alheio com frequência traz alguma satisfação.  
 
Ao indivíduo que está fortemente ligado à sua alma imortal, o sofrimento não dá prazer ou orgulho masoquista.  Ele procura evitar as dificuldades de modo saudável. Sabe que a dor é parte da vida, mas pode ser reduzida até certo ponto. Está consciente de que, quando a busca do prazer é vista como meta em si, abrem-se as portas da desgraça moral e ética.
 
O cidadão sensato evita a dor dos outros, dentro do possível, e prioriza agir contra as Causas do sofrimento próprio e alheio.
 
Em qualquer século ou milênio, os que trabalham pelo bem da humanidade pagam um preço cármico por terem esta honra. Devem aceitar uma quota significativa de sofrimentos, por contrariarem a ignorância organizada e a rotina mental que parecem dominar os assuntos diários de uma civilização materialista.
 
A narrativa da vida de Jesus, no Novo Testamento, exemplifica a caminhada do autossacrifício altruísta. Alguns dos principais filósofos do mundo antigo, inclusive Sócrates, Sêneca e Cícero, foram perseguidos pelos poderosos do seu tempo. Nenhum deles buscou a dor própria ou alheia, nem glorificou o sofrimento, mas souberam vivê-lo com dignidade.
 
Os exemplos de heroísmo são numerosos na história de todos os povos. Alguns dos principais heróis são anônimos e desconhecidos. Outros são lendários. As histórias de heróis expressam lições duradouras de grande valor.
 
No Brasil, Tiradentes sacrificou-se conscientemente pela independência do país. A atitude foi saudável porque a meta não era a sua dor, nem a dor de outros. O objetivo era a independência. O sofrimento foi o preço cármico a pagar pela tentativa ingênua, infeliz, de fazer um levantamento armado.
 
Chico Mendes (1944-1988) sacrificou-se pela defesa da floresta e da economia ecologicamente sustentável dos povos da Amazônia. Foi assassinado a tiros, a sangue frio, por contrariar grupos econômicos interessados na rápida destruição do ambiente natural. Sua meta não era morrer, mas defender a vida.
 
Não é pela força que os povos evoluem: é pela compreensão.
 
No entanto, o conflito armado às vezes é necessário para evitar o pior, como no caso da segunda guerra mundial.
 
O sádico e o masoquista estão presos ao negativismo: o indivíduo saudável é um construtor. Por outro lado, a vida apresenta situações complicadas.
 
Quando jovem, Helena Blavatsky participou como voluntária de uma operação de guerra ao lado de Garibaldi. Em 1867, na Itália, ela quis buscar a libertação dos povos por meios violentos. Tentou construir um mundo melhor, de maneira errada. Foi quase morta. Durante o resto da vida, sofreu com as dolorosas sequelas dos ferimentos recebidos na batalha de Mentana. Aprendeu que a violência não é eficiente. Viu que a construção do acerto é mais importante que a destruição do erro. Cerca de sete anos mais tarde, fundou em Nova Iorque o movimento teosófico moderno.
 
Uma relativa indiferença à dor pessoal é um princípio da filosofia estoica e da ciência esotérica. Por outro lado, o respeito à Vida constitui um ponto decisivo. 
 
A compaixão é uma lei da natureza. A teosofia é a filosofia da amizade por todos os seres, e também do altruísmo.
 
Os pais se sacrificam pelos filhos, e quando o sacrifício é sensato as relações familiares são saudáveis. Quando o sacrifício é neurótico, os pais passam a falar do seu sofrimento de modo masoquista, descrevendo o sacrifício de maneira que seus filhos se sintam culpados. Em outros casos os pais se comportam de modo autoritário e excessivamente dominador, pensando que o seu sacrifício pelos filhos lhes dá este direito. Pais e mães saudáveis precisam ter energia e responsabilidade na relação com as crianças. No entanto, devem ser sobretudo amigos dos filhos.
 
Os irmãos mais velhos se sacrificam pelos mais novos, e podem sentir prazer e orgulho saudáveis por causa disso. Na verdadeira amizade, cada um renuncia a seu egoísmo na construção de um relacionamento regulado pelo apoio mútuo.  No local de trabalho e na vida social, todos podem aceitar a lei do sacrifício altruísta, que ensina gestos de grandeza interior e desapego, para que o bem comum seja alcançado.
 
Justiça e Equilíbrio Produzem Felicidade
 
Cada vez que vejo uma ideia ou um indivíduo sendo atacados por todos os lados e situados no meio de um intenso círculo fechado de má vontade, percebo instintivamente uma certa covardia no ar, e penso:
 
“Algo de muito bom e útil deve haver nisso, ou no que este indivíduo tem a dizer. Caso contrário não haveria tamanha unanimidade no desprezo.”
 
Qualquer unanimidade negativa e intensa contra um ser indefeso denota uma forma perversa de ignorância. 
 
Nas touradas, vários toureiros provocam alternadamente a raiva de um touro enquanto o público se diverte com a situação. O destino do touro é a morte. A raiva e o perigo, e finalmente a morte violenta do mais fraco, são vistos como um passatempo.
 
A violência dos filmes modernos oferece a um público ávido sequências intermináveis de emoções sádicas e masoquistas, vividas como se isso fosse um lazer inocente a ser experimentado ao sabor da pipoca e da Coca-Cola.
 
Nas relações familiares e outras, o mais fraco, ou o mais sincero, é frequentemente objeto de riso e escárnio. Faz o papel de touro covardemente levado à raiva pelos toureiros que o matarão. O mais astucioso, por sua vez, costuma fingir, enganar e abusar da sorte, até a hora em que finalmente colhe o que plantou.
 
Aquele que tem reações diferentes das usuais ou uma maneira mais profunda de olhar a vida é colocado à parte em mais de um grupo social. Por séculos, índios, negros, mulatos, judeus e os “forasteiros” em geral têm sido odiados e perseguidos, funcionando como espelhos da negatividade neurótica produzida pela ignorância coletiva.
 
No mundo político e outros grupos sociais está presente a mesma tendência de produzir bodes expiatórios.
 
Quando um dirigente público tem prestígio crescente – o que com frequência depende de propaganda -, sua ação atrai a simpatia de muitos e por toda parte pessoas parecem concordar sinceramente com o que diz. Quando seu prestígio cai – o que também costuma estar vinculado à “lei da aparência e do marketing” – a média da opinião se volta subitamente contra ele. A situação muda como num passe mágico. Todos então parecem ansiosos para dizer algo negativo a seu respeito. 
 
A criação de bodes expiatórios, sobre os quais se projeta o sentimento acumulado de frustração coletiva, é uma marca registrada do processo vivo da ignorância.
 
Nas lutas por poder, em qualquer âmbito de convivência humana, é fácil identificar a intenção sádica com que o atacante tenta transformar o outro em uma lata de lixo psicológico, e lançar sobre ele o peso da sua própria ignorância exacerbada. Os agressores têm um medo infantil de examinar como são produzidos em suas próprias almas os resíduos tóxicos da raiva e da frustração. Tomados de receio, manifestam seus sentimentos de insegurança na forma de ataque a um objeto externo, de preferência um objeto externo que não pode defender-se.
 
O Jesus do Novo Testamento foi um judeu, como eram judeus os seus discípulos todos.  Desafiou frontalmente os consensos da sua época. Foi tratado como bode expiatório, ou touro de touradas, e torturado até à morte.
 
A cerimônia ou esporte popular da “malhação de Judas” segue a mesma lógica do ódio de “todos contra um”.
 
Desde a mais remota antiguidade, cada pioneiro do progresso humano teve e ainda tem de desafiar a opinião pública dos seus dias e ser alvo de desprezo. Giordano Bruno, Paracelso, Alessandro Cagliostro e Helena Blavatsky são alguns poucos exemplos entre milhares. Na maior parte dos casos, o nome de tais heróis permanece desconhecido.
 
A busca cega de prazer e de segurança, a fuga neurótica de sofrimento, a autoilusão e a preguiça de pensar estão na base dos sentimentos de raiva (sadismo) e medo (masoquismo).
 
O povo que transcende a busca animal de prazer encontra na mesma medida a paz. A sublimação dos impulsos grosseiros e destrutivos – escreveu Freud – permite a existência de uma civilização.  O Dhammapada budista ensina:
 
“…. Aqueles que conhecem a Lei encerram seus conflitos em seguida. Quem vive em busca de prazeres, com seus sentidos descontrolados, sem moderação ao comer, indolente, desvitalizado – a ele verdadeiramente Mara (o Egoísmo) derruba, assim como uma tempestade derruba uma árvore. Quem vive disciplinando a si mesmo, sem dar atenção a prazeres, com seus sentidos controlados, moderado ao comer, cheio de fé e coragem (Virya) – a ele verdadeiramente Mara (o Egoísmo) não derruba, assim como uma tempestade não derruba uma montanha rochosa.” [7]
 
Nem todos têm discernimento:
 
“Aqueles que vivem no mundo de prazeres da fantasia enxergam verdade no que é irreal e inverdade no que é real. Eles nunca chegam à verdade. Aqueles que se estabelecem no mundo do pensamento correto enxergam verdade no que é real e inverdade no que é irreal.  Eles chegam à verdade.”
 
A escritura prossegue com a metáfora da chuva:
 
“A chuva flui para dentro de uma casa com telhado mal construído, assim como os desejos fluem para dentro de uma mente mal treinada.  A chuva não molha uma casa com telhado bem construído, assim como os desejos não entram na mente disciplinada. Quem faz o mal sofre neste mundo e sofre no mundo seguinte; ele padece nos dois. Aflito, ele se inquieta ao rever os seus atos pecaminosos. Quem é virtuoso tem contentamento nesse mundo e tem alegria no mundo seguinte; ele se alegra nos dois. Ele tem satisfação e contentamento ao rever seus atos puros.” [8]
 
A verdadeira paz é durável, transcende dor e prazer e decorre de uma consciência tranquila.
 
A estátua do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, parece indicar simbolicamente o próximo passo do aprendizado humano. No alto do Corcovado, o monumento aponta para a vitória da alma sobre a superstição. Inaugurado em 1931, ele mostra Jesus Cristo livre da crucificação sadomasoquista, e sugere o caminho construtivo dos povos saudáveis.
 
Cabe apontar para a civilização do futuro. A cultura moderna tem algo a aprender com os povos antigos. Agir com justiça é o caminho da felicidade. O conhecimento eterno é a linha de luz que liberta os humanos do círculo cego de realimentação do sofrimento, e os leva até o alto, e à bem-aventurança.
 
NOTAS:
 
[1] “A Arte de Amar”, Erich Fromm, Ed. Itatiaia, Belo Horizonte, 1990, 158 pp., ver p. 30.
 
[2] A obra completa “O Dhammapada” está disponível em nossos websites associados.
 
[3] “A Arte de Amar”, Erich Fromm, Ed. Itatiaia, Belo Horizonte, 1990, 158 pp., ver pp. 30-31.
 
[4] “A Arte de Amar”, Erich Fromm, Ed. Itatiaia, Belo Horizonte, 1990, 158 pp., ver p. 30.
 
[5] “A Arte de Amar”, Erich Fromm, Ed. Itatiaia, 1990, ver pp. 31-32.
 
[6] “A Arte de Amar”, Erich Fromm, Ed. Itatiaia, 1990, ver p. 32.  
 
[7] Capítulo um, versículos seis a oito. A obra completa “O Dhammapada” está disponível em nossos websites associados.
 
[8] “O Dhammapada”, capítulo um, versículos onze a dezesseis. A obra completa “O Dhammapada” está disponível em nossos websites associados.
 
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Para acompanhar uma reflexão sobre o Brasil que leva em conta os conceitos da psicanálise, leia a obra “Tradição e Transformação no Brasil”, de Pessoa de Morais, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1973,  350 páginas.
 
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