Um Diálogo com os Escritos do Líder Indiano
 
 
Carlos Cardoso Aveline
 
 
 
 
 
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Reproduzimos a seguir o capítulo 21 da obra   
Conversas na Biblioteca – um diálogo de 25
séculos”, de Carlos Cardoso Aveline. O livro tem 170 pp.
e foi publicado pela Edifurb, de Santa Catarina, em  2007.
 
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São raros os sábios que lideram pessoalmente transformações políticas e sociais. O indiano Mohandas Karamchand Gandhi foi uma dessas exceções – e o resultado duro e difícil dos seus esforços mostra como é lento o progresso da humanidade. 
 
Nascido em Kathiavar no dia 2 de outubro de 1869, Gandhi ficaria conhecido na idade madura pelo nome de “Mahatma” (grande alma). Sob influência do escritor Leon Tolstoi, ele criou um método de mobilizações sociais não-violentas que não só possibilitou a independência do seu país em 1947, mas exerce ainda hoje uma influência sobre os movimentos sociais de todo o mundo.
 
Dono de uma coragem política extraordinária, Gandhi ignorava os jogos de cena e seguia a voz da sua consciência. Seu ideal era uma Índia independente, unificada, livre da miséria e da corrupção. Vendo-se derrotado no final da vida por tensões sociais e religiosas que não podia controlar, ele qualificou a divisão do seu país entre hindus e muçulmanos, em 1947, como uma “tragédia espiritual”. E confessou:
 
“Não concordo com o que os meus amigos mais próximos estão fazendo; 32 anos de trabalho chegam a um final sem glória.”
 
De fato, as lições gandhianas de tolerância filosófica e religiosa estavam sendo sistematicamente ignoradas. Ao chegar, a sonhada independência política levava a Índia a uma guerra civil.
 
Na tarde de 30 de janeiro de 1948, um angustiado Gandhi caminhava para suas orações, rodeado de amigos, quando um radical hindu, contrário à harmonia entre hinduísmo e islamismo, aproximou-se do líder, saudou-o solenemente, sacou um revólver e atirou. Gandhi apenas mencionou o nome de Deus e juntou as mãos como para uma prece, antes de cair. A ferida era mortal. Seu corpo deixou de respirar poucas horas depois.
 
O mundo ficou mais pobre sem Gandhi –  mas as lições que ele deixou para a humanidade permanecem vivas e ainda inspiram milhões de pessoas. Fazem parte do seu ensinamento o pacifismo, a humildade, o desapego, o altruísmo, a simplicidade voluntária, a ajuda mútua, a ação comunitária e a democracia de base.
 
 
1) Qual a importância da Verdade, no caminho da sabedoria?
 
R: A palavra satya (verdade) vem de sat, que significa ser. Na realidade, não há nada, não existe nada a não ser a Verdade. É por isso que Satya ou Verdade talvez seja o nome mais importante para Deus. Com efeito, dizer que a Verdade é Deus é mais certo que dizer que Deus é a Verdade. (…) Onde está a Verdade está, também, o conhecimento que é verdadeiro. Onde não está a Verdade, não podemos encontrar o conhecimento verdadeiro. É por isso que associamos a palavra chit ou conhecimento à palavra que designa Deus. E onde se encontra o conhecimento verdadeiro há sempre a alegria (ananda), e não há lugar para a dor. Como a Verdade é eterna, também a alegria que dela deriva é eterna. É por isso que conhecemos Deus sob o nome de Sat-Chit-Ananda. É o que reúne em si a Verdade, o Conhecimento e a Alegria.
 
2) Para quem busca a sabedoria,  qual é o objetivo da vida?
 
R: Somente a devoção a essa Verdade justifica nossa existência. A verdade deve ser o centro de toda nossa atividade. Ela deve ser o sopro da nossa vida. Quando o peregrino chega a essa etapa do caminho, ele descobre sem esforço as outras regras da vida e se amolda a elas instintivamente. Mas sem Verdade será impossível observar na existência algum princípio ou alguma regra.  Crê-se, de forma geral, que para seguir a lei da Verdade é suficiente dizer a verdade. [Mas] devemos dar à palavra Satya um significado mais profundo. A Verdade deve manifestar-se em nossos pensamentos, em nossas palavras e em nossas ações. Para aquele que realiza a Verdade em toda sua plenitude nada mais resta a aprender, pois todo o conhecimento está necessariamente ligado à Verdade.
 
3) A ignorância espiritual faz com que as nossas verdades particulares fiquem rígidas, e disso surgem a intolerância e o ódio.  O que é a Verdade, quando não há fanatismo?
 
R: O que é a Verdade? É uma questão difícil. Eu a resolvi para mim, dizendo que é aquilo que nos diz a voz interior. Mas, perguntarão, como fazer se pessoas diferentes concebem verdades diferentes e contraditórias? Já que o espírito humano trabalha com inúmeros meios e evolui em cada um de maneira diversa, segue-se que o que é verdade para um será erro para outro. Aqueles que fizeram experiências  chegaram à conclusão de que necessitam de certas condições. Para fazer experiências científicas são indispensáveis certos conhecimentos científicos; assim, é necessário rigor para iniciarmos experiências no campo espiritual. Antes de ouvir sua voz interior, cada um deveria dar-se conta de suas próprias imperfeições.  Temos, então, a convicção, que repousa na experiência, de que aqueles que procuram por si mesmos a Verdade como Deus devem fazer muitos votos, como o voto da verdade, o voto de brahmacharia ou pureza, o voto da não-violência, o voto de pobreza e de não-possessão. Se não nos impusermos tais votos, não poderemos iniciar a experiência. Outras condições são também necessárias mas não vou enumerá-las aqui. (…) A verdade é dura como o diamante e frágil como a flor do pêssego.
 
4) O que é não-violência?
 
R: A não-violência é meu primeiro artigo de fé. É também o último artigo de meu credo. A não-violência completa é a ausência completa de maus desejos com relação a tudo que vive. A não-violência, na forma ativa, é a boa vontade para tudo o que é vivo. É o amor perfeito.
 
5) Apesar das aparências, a não-violência nada tem a ver com covardia ou indiferença diante da injustiça…
 
R: Já é bastante nobre defender seu bem, sua honra e sua religião na ponta da espada. É mais nobre ainda defendê-las sem fazer mal ao malfeitor. Mas é vil, antinatural e desonroso abandonar seu posto e, para salvar a pele, deixar seu bem, sua honra e sua religião à mercê do malfeitor. Vejo que posso, com sucesso, pregar a não-violência àqueles que sabem morrer, mas não àqueles que têm medo da morte.
 
6) No Brasil, os programas de combate à fome têm sido de muita propaganda. Mas alguns alegam que o assistencialismo clientelista é ineficiente, e que o correto é gerar oportunidades de trabalho digno para todos, ao invés de apenas distribuir alimentos. A “esmola assistencial” destrói a autoestima do trabalhador?
 
R: Minha não-violência não permitiria dar uma refeição gratuita a um homem saudável, que não trabalha honestamente para ganhá-la.  Se eu tivesse poder, suspenderia todo sadavrata (empreendimento de caridade) em que se dá alimentos em troca de nada.  Tal hábito faz degenerar o povo; e, ter preguiça, ociosidade e hipocrisia, é um crime.
 
7) Qual a importância de fazer orações?
 
R: O objetivo da prece não é agradar a Deus, que não anseia por nossas preces e louvores; é purificar-nos. O processo de autopurificação consiste na percepção consciente de Sua presença em nós. Nada supera a força proporcionada por tal percepção. A presença de Deus deve ser sentida a cada passo da vida. Se pensarmos que ao sair do lugar do culto podemos viver e comportar-nos de qualquer modo, nossa participação nas orações terá sido inútil.
 
8) Qual a importância do diálogo entre as diferentes religiões?
 
R: O que se necessita nesse momento não é uma religião, mas respeito e tolerância entre os devotos de diferentes religiões. Devemos alcançar não a unidade da morte, mas a unidade na diversidade. Qualquer tentativa de eliminar tradições, ou os efeitos da hereditariedade, do clima e outras condições não só está condenada ao fracasso, mas é um sacrilégio. A alma das religiões é a mesma, mas ela está presa em uma multidão de formas. A alma persistirá até o final dos tempos. Os homens sábios ignoram a casca externa e veem a mesma alma viva sob uma variedade de crostas. (…) A Verdade não é propriedade exclusiva de nenhuma escritura.
 
Nota Bibliográfica:
 
As fontes das respostas acima são, respectivamente: 1) “Cartas ao Ashram”, de Gandhi, Hemus Editora, SP, 124 pp., ver pp. 25-26; 2) “Cartas ao Ashram”, obra citada, p. 26;  3) “Cartas…”, pp. 85-86;  4) “Cartas…”, pp. 90-91;  5) “Cartas…”, p. 97;  6) “Cartas…”, p. 110;   7) “A Roca e o Calmo Pensar”, de Mahatma Gandhi, Editora Palas Athena, SP, 1991, 249 pp., ver p. 32; 8) “The Message of Mahatma Gandhi”, Publications Division, Ministry of Information, Government of India,  1968, 136 pp., ver pp. 37-38.
 
As obras e escritos reunidos de Gandhi, publicados na Índia, somam dezenas de volumes. Sua autobiografia tem uma edição popular pela editora Penguin, de Londres: “An Autobiography, or the story of my experiments with Truth”, Penguin Books, London, 1982, 454 pp. 
 
Gandhi escreveu uma versão da famosa obra clássica hindu Bhagavad Gita. A editora Ícone, de São Paulo, editou o “Bhagavad Gita” de Gandhi em 1992, com tradução de Norberto de Paula Lima, e 180 pp. A obra está esgotada. O “Bhagavad Gita” de Gandhi também foi publicado pela Editorial Kier, de Buenos Aires, em 1969, reimpressão em 1986, 182 pp., com o título de  “El Bhagavad Gita de Acuerdo a Gandhi, Evangelio de la Acción Desinteresada.
 
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