Pomba Mundo
 
O Despertar de um Sábio no Mundo dos Carneiros
 
 
Marie Louise Burke
 
 
O Discipulado de Hari, o Leão
 
No tempo certo, todo carneiro se reconhece como leão
 
 
 
Nota Editorial de 2012:
 
Válida para pessoas entre sete e cento e sete anos de idade – a narrativa a seguir é reproduzida do livro “Contos Mágicos da Índia”, de Marie Louise Burke. [1]
 
O conto deve ser lido como uma metáfora. Um mundo de carneiros é habitado por cidadãos que obedecem aos interesses menores do eu inferior, e que são escravos cegos do apego ao conforto. Nesse contexto, a imagem de um leão simboliza aquele que tem coragem de buscar a verdade, e ânimo para viver em contato ampliado com sua própria alma imortal.  
 
Inicialmente, os leões são poucos. Eles abrem caminho para que os carneiros despertem. São vistos como “inimigos” porque destroem a ignorância organizada. Os leões são uma ameaça grave à rotina de um rebanho apegado à futilidade. Os carneiros temem ser “devorados”, isto é, eles sentem que sua comodidade pode ser destruída por quem busca a sabedoria. E, tendo nascido no rebanho da ignorância espiritual, até mesmo um indivíduo destinado ao despertar interior permanece desorientado durante um tempo mais ou menos longo, enquanto não reconhece a si mesmo como leão. E isso normalmente ocorre com ajuda do Mestre – ou do ensinamento.
 
A vida mostra que o discipulado de Hari não é um fato isolado. Ao contrário: é um anúncio da primavera, e aponta para uma potencialidade que pode ser desenvolvida a qualquer momento por todo carneiro. O despertar de Hari é contagioso. O destino dos carneiros, chegados à maturidade, é reconhecerem-se como leões. No tempo certo, todo rebanho de carneiros temerosos se transforma em uma comunidade livre de cidadãos solidários, autorresponsáveis e autoconfiantes.  
 
(Carlos Cardoso Aveline) 
 
O Discipulado de Hari, o Leão
 
Marie Louise Burke
 
A mãe ovelha, que havia alimentado Hari e cuidado dele em seus primeiros anos de vida, esquecera que ele não era seu filho, sendo, na verdade, filho de uma leoa. Não apenas a mãe, mas todo o rebanho havia esquecido as circunstâncias extraordinárias do nascimento de Hari, apesar disso ter sido testemunhado por quase todos.
 
Na época do nascimento de Hari, um pânico momentâneo espalhou-se no coração do rebanho, como era de se esperar. Foi um acontecimento inusitado e alarmante. Naquele dia particular, os carneiros estavam pastando, balindo e seguindo uns aos outros, perfeitamente felizes, quando apareceu, às margens da floresta que fazia limites com a campina, uma leoa castanho-amarelada. Ela parou farejando o ar, olhando para o rebanho com um sorriso curioso entre os lábios – meio desesperado, meio esperançoso. A leoa não se sentia bem. O corpo estava inchado e a respiração ofegante. Não era jovem; não comia há dias; estava prestes a dar à luz e, além disso, seu coração não estava nada bem. Lenta e dolorosamente se aproximou do rebanho, sem desviar os olhos dele.
 
Os carneiros não se deram conta logo de que estavam sendo atacados. A leoa estava praticamente em cima deles quando, um após outro, viraram-se para olhar para ela. Durante vários segundos não houve reação, mas, de repente, começou uma correria maluca e confusa, com todos balindo ao mesmo tempo. A leoa lambeu os beiços com impaciência e desdém. Não tinha forças nem vontade de persegui-los pela campina. “Seus patetas”, rosnou.
 
Procurou uma ovelha apetitosa e logo encontrou uma que lhe pareceu boa. A ovelha ficou imóvel, olhando para a leoa. Acontece que, meia hora atrás, havia nascido seu filhote. Estava agora tão dividida entre o impulso de sair correndo e o impulso de proteger o filhinho que nada pôde fazer. Ficou parada, respirando com dificuldade.
 
A leoa aproximou-se agachada e  deu um salto no ar  jogando o corpo na  direção da ovelha, aparentemente inerte. Então, de repente, o longo movimento em arco foi interrompido, como se partido em dois, e o enorme corpo amarelo caiu com uma pancada surda em cima do filhote, errando o alvo. A ovelha fechou os olhos por uns instantes.
 
Em poucos segundos Hari saiu do corpo da leoa, cego, indefeso e tremendo por causa da queda. A mãe já estava morta e de nada adiantou ele se aconchegar e choramingar, pois não recebeu nenhum alimento. Desistiu e andou pela grama, movido pelo estômago, miando e virando a cabeça de um lado para outro. Logo chegou perto da ovelha, que ainda não se mexera; estava completamente atordoada. Contudo, destinada a prover comida a Hari de uma forma ou de outra e, em obediência a uma vontade infinitamente maior que ela, deitou-se ao toque suave e suplicante e o alimentou.
 
Quando o medo passou, o rebanho reuniu-se em torno do estranho grupo: Hari, a mãe adotiva, a leoa e o carneirinho mortos. E todo o rebanho baliu.
 
“Que susto! Pensei que o mundo ia acabar!”
 
“É um milagre que ninguém tenha-se ferido.”
 
“Ainda estou tremendo. Olhei para cima e vi este monstro amarelo!”
 
“Tente esquecer-se disso, querida. De nada adianta ficar pensando nisso”.
 
Os carneiros não tiveram dificuldade de seguir este conselho e, depois de comentarem uns com os outros o que tinha acontecido por mais alguns momentos, voltaram a pastar e tudo foi rapidamente esquecido. Até mesmo a mãe adotiva de Hari logo ficou com a impressão de que ela tinha de fato lhe dado à luz. Para dizer a verdade, ele parecia um pouco baixo, mas era adorável.
 
À medida que Hari cresceu, seus companheiros de brincadeiras começaram a queixar-se dele às suas mães.
 
“Ele me bateu”, eles exclamavam.
 
“Batam nele também”, as ovelhas baliam.
 
Mas este conselho não parecia funcionar e a única alternativa era não incluí-lo nos jogos, com o que, para dizer a verdade, ele não se importava muito.
 
Assim, desde o início, Hari foi solitário. Apesar dos carneiros não perceberem claramente que ele não era um deles, sentiam que ele era diferente. Eles o achavam peculiar e, por isso, não gostavam dele.
 
“Ele é esquisito”, diziam às suas costas. “Ele me dá uma sensação estranha, uma espécie de arrepio na espinha. É tão rude!”
 
Os carneiros mais espertos chegaram à conclusão de que ele era desajustado e decidiram ter pena dele.
 
O próprio Hari não fazia ideia de que não era um carneiro. Ele nunca se olhara de forma objetiva. Tudo o que sabia é que não gostava dos outros carneiros e que eles não gostavam dele. A vida parecia-lhe incômoda e sem sentido. Ele passou a deitar-se um pouco afastado do grupo e, olhando à distância, perguntava-se:
 
“O que significa tudo isso? Pastar, balir e seguir uns aos outros… Por quê? Com que finalidade?”
 
Ele costumava fazer estas perguntas à mãe e ela lhe respondia que se parasse de andar no mundo da lua algum dia seria um membro útil da comunidade e pai de muitos cordeirinhos. Ele considerava todas as respostas muito insatisfatórias.
 
“Mas, por que eu nasci?” – ele insistia.
 
“Ora, é a vontade do céu, Hari”, ela respondia irritada. “Há pastos e mais pastos para serem podados e você pergunta por que nasceu! Eu, às vezes, não sei qual é o seu problema.” Mas, no fundo do coração a mãe ovelha amava o estranho filho e o defendia dos outros. “Ele é diferente”, ela dizia. E ficava muito magoada ao ver que se olhavam e nada diziam.
 
“Por que você não pode ser normal, querido?” – ela implorava. “Eu sei que você gosta de ficar sozinho, mas isso é tão esquisito. Os carneiros ficam falando de você.”
 
Quase nada do que a mãe de Hari dizia era verdade, mas, apesar disso, ele tinha grande consideração pelos seus conselhos. Sem dúvida, a felicidade e o sentido das coisas está em fazer parte da comunidade e ser normal. Portanto, ele fazia o melhor que podia para se misturar com os demais e não pensar. No início foi difícil. Ele percebia que quando se aproximava todos ficavam em silêncio: saíam, um por um, e formavam um círculo separado dele. Isso dava-lhe uma sensação de fracasso.
 
“Ninguém gosta de mim”, disse à mãe.
 
“Não seja bobo, querido”, ela respondeu. “Você é igual a qualquer um. Só não lhes dá chance de gostarem de você. Precisa se misturar mais.”
 
Todas estas afirmações eram verdadeiras. Hari podia comer mais grama e balir mais alto do que ninguém. Ele só não era bom em ir atrás dos outros. O segredo da felicidade, decidiu, deve estar em segui-los, e isso requer persistência.
 
Portanto, determinou-se a andar com os outros, sem importar-se que o tratassem mal. Forçou-se a juntar-se ao grupo que se reunia pela manhã do lado oeste das árvores e à tarde a leste. E quando o grupo saía, ele os seguia, balindo normalmente, como os outros, em volta das ovelhinhas recém-nascidas e na área da pastagem.
 
Lentamente se tornou tão normal e respeitável quanto qualquer carneiro. Quando chegou a época, filiou-se ao Clube dos Carneiros e passou a tomar parte das discussões sobre o sabor da grama e o mérito dos jovens cordeirinhos.
 
Esta última causava-lhe uma inexplicável repugnância, que considerou anormal e esforçou-se para superar. Ria tão alto como qualquer cordeiro e contava histórias muito melhor. E, embora qualquer coisa sobre sexo o desgostasse, ninguém percebia. Escondia isso até de si próprio, dizendo não ter aparecido ainda a ovelha certa. Apesar de essa falta de interesse não ser inteiramente normal num carneiro jovem, era algo bastante aceitável. Nesse meio tempo, Hari falava grosso e, longe de ser evitado, era procurado.
 
Para dizer a verdade, as ovelhas ainda percebiam que ele era fora do comum, mas isso agora se tornara uma vantagem.
 
“Ele é tão engraçado!” – elas diziam.
 
“Que personalidade!” – orgulhava-se a mãe.
 
Mas, para Hari, havia algo terrivelmente errado. Na verdade, a vida agora era pior do que antes, quando ele ficava deitado na grama sozinho. À noite não podia dormir e uma certeza, uma mistura de dor e escuridão, pesava sobre ele. Era a certeza de que ainda era diferente, de que não tinha encontrado um sentido para a vida e de que, em parte alguma, no céu ou na terra, havia um lugar para ele. Era uma solidão sem resposta.
 
A mãe de Hari ensinara-lhe a rezar, quando ele era filhote. Depois disso deixou de falar em religião. Assim, na mente de Hari, Deus estava associado à infância e ele pensava ser tudo isso uma bobagem. Mais que isso, sua mãe dissera-lhe que Deus era um Carneiro enorme, com grande capacidade, que podia conduzir o rebanho a pastagens verdejantes e dar-lhes conforto, desde que fossem bons membros da comunidade. Mas ninguém jamais tinha visto esse Carneiro, e Ele parecia muito improvável a Hari. Quanto a pastagens verdejantes e mais conforto, ele não queria nada disso.
 
“Não existe Nada”, disse a si mesmo, deitado, sem sono, à noite. “Nada, nada, nada.” E esse nada era escuro, um espaço sem fim, dentro e fora. “Eu queria estar morto. Não queria ter nascido.” Mas esse desejo parecia sem sentido, pois, se ele estivesse morto, ainda assim haveria o Nada. “Mas, pelo menos, eu não saberia disso; não me importaria”, pensou. Mas isso era inconcebível: não saber. Morto ou vivo, ainda haveria algo ou alguém que saberia sobre o nada. Haveria conhecimento do vazio para todo o sempre.
 
“Deus. Deus. Deus”, lamentava-se Hari. Não queria o Deus-Carneiro. Não sabia o que queria. “Deus. Deus. Deus”, continuava dizendo.
 
Assim Hari passava as noites. De dia, tentava manter as aparências, ocultando o buraco negro dentro de si. Ria, contava piadas e flertava com as ovelhinhas adolescentes e invariavelmente deixava-as de coração partido. À medida que o tempo passava, ele se tornou cada vez mais afoito e impetuoso. As ovelhas começaram a sacudir as cabeças e a cochichar.
 
“Eu sempre disse que havia algo estranho nele”, diziam umas às outras.
 
A mãe começou a observá-lo com olhos tristonhos. “Você deveria casar-se, Hari”, balia.
 
“Deus. Deus. Deus.” Hari repetia à noite como se chamasse não sabia o quê ou a quem, e ele nem esperava que alguém respondesse. Era como se o vazio escuro que havia dentro e fora dele estivesse por si mesmo pedindo para ser preenchido de algum modo.
 
E, assim, os dias e as noites passavam e pareciam intermináveis. Balindo, pastando, seguindo; seguindo, pastando, balindo; e o indescritível vazio chamava cegamente: “’Deus. Deus. Deus.”
 
Então, numa noite enluarada, Hari ouviu um estalido de galhos na floresta que margeava a campina. Virou a cabeça na direção do barulho e, de repente, viu um vulto destacado das sombras escuras, recortado contra a luz da lua. Tinha uma cabeça imponente, um corpo esbelto, e os olhos, que olhavam para Hari, eram duas luas. Hari cravou os olhos nele, pois nunca havia visto um ser tão belo, tão sereno, tão seguro de si. Sua postura era a de alguém que não precisava de nada mais além de si mesmo e, no entanto, era como se fosse o dono de toda a terra. Um pensamento rápido surgiu na mente de Hari: “Então há algo mais… algo além do que conheço…” Era uma esperança. Mas, ao mesmo tempo, pensou: “Deve ser um leão, o Rei das Feras.” E ao pensar nisso, lembrou-se que os carneiros deviam temer os leões. E ficou com medo. Levantou-se e preparou-se para correr mas, nesse instante, o leão desapareceu na floresta, deixando atrás de si um vazio tão grande que Hari deu um grito de dor. Sentiu um desejo irracional de ser devorado por um leão. “Melhor ser devorado. Muito melhor ser devorado por uma criatura assim do que não vê-la jamais. Que tolice ter ficado com medo!”
 
O resto da noite e todo o dia seguinte Hari pensou no leão. “Existe aquilo!” – ficou pensando. “Algo além do que conheço. Algo mais belo do que o Deus-Carneiro, se é que o Deus-Carneiro existe. Algo Real!” Não mencionou a experiência ao rebanho. Era algo muito sagrado. Além disso, ele nem percebia mesmo os carneiros. Só desejava ver o leão outra vez.
 
Hari esperou toda a noite seguinte. Mas o leão não veio. A lua e as estrelas sumiram no céu e a aurora despontou, revelando a campina fútil e sem graça. Tudo era exatamente como sempre tinha sido, mas agora o pesar e a solidão de Hari eram maiores do que nunca. O sol levantou-se e ele enfiou a cabeça entre as patas, que lhe pareciam cascos fendidos, e lamentou-se. “Afinal não passou de um sonho. Como sou bobo!”
 
Mas, subitamente, ouviu um ruído de galhos e lá estava o leão na beira da floresta: não como Hari o tinha visto antes, não uma forma escura, entre as sombras, mas um Ser dourado, pulsante. Sua juba espessa e o tufo de pêlos na ponta da cauda captavam os raios da luz da manhã e cintilavam. Os olhos eram como dois sóis. Hari arquejou e se levantou. O que tinha visto antes não era nada comparado a isso. O leão o olhou e em seus olhos de sol havia uma compaixão que parecia penetrar até o fundo da alma de Hari, uma compaixão que conhecia e compreendia tudo. E nas profundezas daqueles olhos, Hari sabia, estava a resposta que buscava. Era Algo brilhante e verdadeiro.
 
Durante vários segundos Hari e o leão ficaram olhando um para o outro. Então, o leão deu um passo para a frente e, de repente, Hari sentiu uma pontada de medo na boca do estômago. Tentou lembrar-se do quanto havia desejado ser devorado; mas ver o leão frente a frente era outra coisa. O leão deu mais um passo. Hari virou-se e correu.
 
O sofrimento de Hari depois disso foi indescritível. “Perdi a única coisa que amei na vida por causa desse medo estúpido e covarde. Bobo! Bobo! Bobo!” Ele estava convencido de que o leão nunca mais voltaria. E, por várias semanas o leão não voltou. Hari sabia que estava não apenas condenado, mas muito pior, autocondenado à Não- Existência.
 
Então, num belo dia o leão reapareceu. Era meio-dia. O rebanho estava, como sempre, comendo grama e mastigando e não perceberia o intruso se Hari não sentisse sua presença no momento exato em que saiu da floresta para a campina aberta.
 
“Leão!” – gritou, tão grande foi sua alegria e surpresa.
 
Para o rebanho este grito era alarmante. Foi um corre-corre medonho, todos os carneiros espalharam-se, balindo espavoridos. Mas Hari ficou parado e esperou. Embora sentisse medo, aprendera que há coisas piores do que ser devorado por um leão. Ficou ali, tremendo da cabeça aos pés e esperou. O leão ignorou os carneiros que corriam de um lado para o outro e dirigiu-se diretamente para onde Hari estava. Parou tão perto dele que Hari podia sentir o cheiro agradável de sua respiração. Mesmo assim não se mexeu. Fechou os olhos e retesou-se, esperando a mandíbula negra entrar em sua carne e os dentes brancos o rasgarem.
 
De repente, ouviu um rugido suave e baixo, como um trovão distante. “Qual é o problema?” – perguntou o leão.
 
Hari abriu os olhos e viu-se outra vez em frente aqueles olhos compassivos e penetrantes. Estava claro que não ia pular nele, somente estava oferecendo sua amizade. Sentiu vontade de chorar como nunca fizera antes – nem mesmo quando era criança.
 
“Não sei, senhor”, respondeu com uma voz baixinha.
 
“Você é um leão. O que está fazendo aqui no meio dos carneiros? Por que está com medo?”
 
“Sou um carneiro, senhor”. Hari corrigiu timidamente.
 
“Você é um leão!” – rosnou o leão. Era como o estrondo de um trovão sobre sua cabeça.
 
“Sim, senhor.” Hari baliu e deu um passo para trás. Começou a chorar.
 
O leão o olhou com bondade e meneou a cabeça.
 
“Isso está mal”, disse como se falasse consigo mesmo. “Bem, meu filho, vamos ver. Eu vivo no meio da floresta. Venha visitar-me e nós poderemos conversar de novo. Isto é, se você quiser.”
 
“Oh, sim, senhor”, disse Hari com um soluço.
 
O leão sorriu. “Muito bem”, respondeu. Virou-se e dirigiu-se de volta à floresta.
 
Hari continuou chorando o resto do dia. Toda vez que se recordava dos olhos do leão tinha uma crise de choro. Era como se algo tivesse entrado em seu vazio e se precipitasse em lágrimas. Ao mesmo tempo, nunca se sentira tão feliz em toda a sua vida.
 
Na manhã seguinte, antes do sol nascer, levantou-se e começou a colher os melhores trevos da campina. Não os comeu, juntou-os delicadamente na boca para oferecer ao leão. Então, sem despertar o rebanho, embrenhou-se na floresta, onde sua mãe dissera-lhe para nunca se aventurar. Esse tinha sido o conselho mais sério que ela lhe dera, tão sério que não se falava mais nisso, pois se tomara uma lei, como não-ande-por-aí-sozinho ou não-coma-carne. [2]
 
A floresta estava escura, formas sombrias moviam-se entre as árvores. Estranhos ruídos pareciam ameaçá-lo e isso encheu seu coração de terror. Não conseguia abrir a boca para balir, nem cerrar os dentes para revestir-se de coragem, pois estava com a boca cheia de trevos macios. O medo deixou sua boca muito seca mas, por estranho que pareça, estava contente. Isso mantinha os trevos fresquinhos e agradáveis para o leão.
 
Mas logo lhe ocorreu que não sabia exatamente para onde estava indo. Surgiu em sua mente uma imagem de si mesmo. Era muito vivida: um carneirinho frágil, vulnerável, perdido na floresta terrível e proibida. E para piorar ainda mais sua difícil situação, entrar na floresta tinha sido uma atitude deliberada de sua parte. Sentia-se muito ansioso. Pensou no rebanho ainda dormindo em uma campina segura e acolhedora, livre de toda preocupação, que ele, de certo modo, estava traindo. Sentiu uma onda de carinho e saudade da mãe, de quem não havia nem mesmo se despedido. E pensou no leão, que falara realmente como um louco:
 
“Você é um leão!”
 
Era uma loucura. Uma grande loucura.
 
Não obstante, Hari continuou entrando cada vez mais na floresta. Logo depois, o sol levantou-se e a luz dispersou-se através das folhas. Ele devia estar correndo há quase uma hora e, com certeza, estava próximo do coração da floresta, onde vivia o leão. Então, foi assaltado outra vez pelo temor: e se o leão tivesse esquecido? E se ele risse? Pela primeira vez Hari se deteve. “Sou um bobo”, pensou. “Por quê motivo um leão iria falar com um carneiro? Ele estava só caçoando de mim.” E, de repente, perdeu toda a força para seguir em frente. Tremia da cabeça aos pés, num calafrio paralisante. Os trevos na boca lhe pareciam absurdos. “Ele vai rir. Oh, como sou bobo. Um carneiro bobo, um bobo.”
 
Mas ele desejava tanto ver, pelo menos mais uma vez, os olhos dourados do leão que se obrigou a dar mais dez passos a esmo. “E se ele rir”, pensou; “Ora, ainda assim eu o terei visto.”
 
Então, como num passe de mágica, através da luz do sol e das sombras, o leão surgiu na sua frente resplandecente e mais bonito do que Hari se lembrava.
 
“Bem, bem”, ele disse. “Então você veio. Muito bem.”
 
De repente, o coração de Hari incendiou-se de alegria e todo o medo desapareceu, como se nunca tivesse existido. Curvou-se e depositou os trevos aos pés do leão.
 
“É para você”, disse tímido.
 
“Não precisava se incomodar.” O leão sorriu e comeu a pilha de trevos até a última folhinha, enquanto Hari observava e sentia-se infinitamente mais satisfeito e contente do que se estivesse ele mesmo comendo.
 
“Obrigado”, disse o leão ao terminar.
 
Hari sentiu o sangue subir-lhe às faces e sussurrou: “Obrigado a você.”
 
O leão olhou-o com bondade. “Bem”, perguntou, “está disposto a ficar?”
 
Hari ficou de boca aberta. Esperava que o leão o deixasse ficar um pouco mais, uma meia hora ou algo assim, mas era tudo o que tinha planejado.
 
“Acho que tenho de voltar até a hora do almoço”, respondeu.
 
“Como assim?”
 
“O Clube dos Carneiros tem uma reunião hoje e, bem, minha mãe vai ficar preocupada.”
 
“Ora, esqueça isso!” – rugiu o leão. “Você é um leão! Fique longe dos carneiros.”
 
“Mas, senhor, é minha gente”, baliu Hari. “Precisam de mim.”
 
“Para quê?” – perguntou o leão.
 
“Ora, eu faço eles rirem e se sentirem felizes e lá é meu lugar. É meu dever”, acrescentou vivamente.
 
O leão lambeu os beiços. “Muito bem”, disse friamente, “volte então. Mas não espere me ver outra vez.” E olhou para o lado, como se o problema não fosse dele.
 
Hari ficou em silêncio, sem se mexer. Sabia, no fundo de seu ser, que nunca mais deixaria o leão, apesar de parecer impossível a um carneiro até mesmo pensar em tal ideia. Sua vida com o rebanho, toda a segurança e o conforto passaram por sua mente; e mais uma vez ele viu a imagem incongruente e patética de um carneirinho numa floresta estranha e aterradora. Mas a primeira imagem era sem o Leão; e a segunda com o Leão. E o Leão era Algo que ele sempre havia procurado.
 
“E então?” – perguntou o leão depois de algum tempo. “Já se decidiu?”
 
“Sim, senhor”, respondeu Hari. “Por favor, me deixe ficar.”
 
O leão sorriu. “Vem comigo.” Conduziu-o a um lago tranquilo, entre as árvores. “Chegue aqui perto e olhe para a água. O que vê?”
 
Ele viu dois magníficos leões de cara grande e um grosso colar de pelos dourados em torno da cabeça.
 
“Vejo dois leões”, respondeu. “O senhor e outro igual ao senhor, porém menor.”
 
“Você é o outro”, disse-lhe o leão. “É o seu reflexo. Como vê, você é um leão.”
 
Então explicou que Hari era um leão de verdade e não um carneiro, como pensava. E, quando terminou, Hari disse:
 
“Mas, senhor, se sou um leão como é que sou um carneiro?”
 
“Você não é um carneiro”, o leão respondeu em alto e bom tom. “Estou lhe dizendo: você é um leão.”
 
“Mas…”, Hari começou.
 
“Não tem nada de mas”, o leão rugiu e pisou firme no chão fazendo a água tremer. Hari também tremeu.
 
“Sim, senhor”, ele disse. Entretanto, terminou a frase para si mesmo: “…eu sou um carneiro.”
 
O leão olhou fixamente para ele e rugiu: “Se você quer ser um carneiro, por que veio até aqui? Pode voltar se quiser. Vai se sentir melhor lá fora.” E começou a afastar-se.
 
“Oh, não, senhor!” – Hari o chamou. “Por favor, senhor.” O leão voltou.
 
“O que quer?” – perguntou sério. “Decida-se.”
 
Hari pensou por um longo tempo. Na verdade, ele gostaria de ser um leão, mas isso estava além de todas as possibilidades. O reflexo na água era maravilhoso e podia ser verdadeiro para leões, mas não para um carneiro. Ainda assim, ele não queria continuar a ser um carneiro como fora até agora. Quem sabe um carneiro com uma mistura de leão: sim, era isso!
 
“Quero ser um carneiro bom e forte, senhor”, disse e achou que isso soara muito bem. Mas o leão tinha empinado a cabeça e o olhava firme. “Quer dizer então que você quer ser um carneiro bom e forte. Muito bem! Volte para a campina e seja um carneiro. Floresta não é lugar para um carneiro bom e forte. Floresta é lugar de leões. Leões! Entende?” Enquanto falava, seu pêlo resplandeceu e ficou luminoso e faíscas flamejaram dos olhos. Ele era a pura majestade.
 
Hari ficou arrasado. O melhor, o mais forte, o mais bonito carneiro do mundo seria como uma sombra ao lado de um leão verdadeiro. Nada mais era digno de existir.
 
“Posso ser um leão?” – perguntou trêmulo.
 
“Você tem alguma alternativa?” – respondeu o leão.
 
“Não, senhor”, e quase ia dizendo “mas…”, porém ficou calado. Em vez disso, pediu: “Por favor, senhor, me ensine.”
 
O leão sorriu e olhou para as árvores, esquecendo-se aparentemente da existência de Hari. Hari ficou ali parado, meio sem jeito, olhando para ele, esperando que se lembrasse dele outra vez.
 
Depois de um longo tempo, o leão o olhou. “Tudo bem”, disse. “Agora, medite em sua verdadeira natureza. Repita: Eu sou um leão. Eu sou um leão.” Tente não balir muito. E observe seu reflexo todos os dias.
 
“Sim, senhor”, disse Hari. E ele sabia ter entregue sua vida nas mãos do leão e nada mais grandioso do que isso podia acontecer a um carneiro. Seu coração ficou cheio de uma alegria radiante, impossível de expressar em palavras. Prostrou-se aos pés do mestre.
 
“Agora viva aqui comigo e faça como lhe disse”, ordenou o leão.
 
Assim, todas as manhãs, ao romper do dia, e todas as tardes, ao pôr-do-sol, Hari sentava-se às margens do lago para meditar. Às vezes, sua mente divagava nos assuntos de carneiros. Passavam em sua cabeça fragmentos das conversas que mantinha no Clube dos Carneiros e memórias carinhosas da mãe chegavam a ele. Mas, gradualmente, tais pensamentos tornaram-se cada vez mais vagos e ele conseguia controlar a mente. “Eu sou um leão. Eu sou um leão”, repetia.
 
Tentou isso dando ênfase diferente às palavras para dar-lhes uma entonação de rugido: “Eu sou um leão. Eu sou um leão. Eu sou um leão.” Mas, nada mudara: ele ainda era um carneiro – porém um carneiro que começava a sentir-se em casa na floresta, que no começo parecera-lhe tão estranha e temível. Quando ele não estava meditando, olhava-se no lago e estudava seu reflexo ou, melhor, sentava-se e olhava profundamente para os olhos dourados do mestre e sentia estar olhando para a própria eternidade. E estava sempre pronto para servir o leão, antecipando suas mínimas necessidades. Às vezes o Leão contava-lhe histórias da floresta e de outros leões. Às vezes, ralhava com ele por causa de seus hábitos de carneiro, os olhos flamejavam como fogo e o rugido era como um trovão; mas ele nunca o deixava só. Aqueles foram dias felizes.
 
Então, certa manhã, inesperadamente, o leão rugiu para ele com o pior rugido que Hari tinha ouvido até então.
 
“Pare com esse balido! Pare de comer grama! O que há com você? Seja um leão!”
 
Hari baixou a cabeça: “Não posso”, baliu.
 
“Então fique longe de mim! Não quero mais ver sua cara. Não me siga.” Virou as costas e afastou-se. E ficou fora por dias e dias. Isso era como a morte.
 
E agora, em seu pesar, pela primeira vez, Hari desejou de todo o coração ser um leão. Viu que a felicidade de ser um carneiro aos pés de um leão não podia durar. E ficou envergonhado de ter-se contentado com isso: era uma fraude. “Tenho que me tornar um leão”, disse consigo mesmo, “somente assim posso obedecer verdadeiramente ao meu mestre”. O desejo cresceu como fogo dentro dele. “Não vou ser um carneiro.” Parou de comer grama e, portanto, parou de comer. “Vou ser um leão ou morrer.” Meditou com tanta seriedade que uma vez ou duas sentiu a presença do Leão ali por perto, tão perto como nunca o tinha sentido. Mas, quando abria os olhos, o Leão não estava ali. Seu pesar e seu desejo não conheciam fronteiras.
 
Então, certo dia, tão inesperadamente como havia partido, o leão retornou, brilhando como o sol entre as árvores escuras. Em sua boca carregava um naco de carne vermelha, gotejante. [3]
 
“Senhor!” – gritou Hari e prostrou-se.
 
O leão aproximou-se dele e, sem cumprimentá-lo, colocou a carne diante de seu nariz. “Coma!” – ordenou.
 
E, embora Hari soubesse que estava quebrando irrevogavelmente o elo final com sua espécie, fez como lhe foi dito: afundou os dentes na carne vermelha e sentiu o gosto do sangue.
 
Então algo maravilhoso aconteceu. Sentiu uma vertigem na cabeça e raios de luz penetraram em seu corpo. Uma força enorme fluiu através de cada nervo. Sentiu-se grande e poderoso. A sensação de ser leão permeou cada célula de seu ser. Tomou consciência de sua juba espessa, de seus dentes brilhantes, de seu corpo forte e flexível; ficou ciente de sua realeza. E sabia, sem sombra de dúvida, que o reflexo no lago era seu e que aquela luz dourada brilhando por trás dos olhos do mestre era seu próprio Eu.
 
E, de repente, ele rugiu.
 
 
NOTAS:
 
[1] “Contos Mágicos da Índia”, Marie Louise Burke, Ed. Teosófica, Brasília, 1996, 144 pp., ver pp. 11 a 33. Agradecemos à Editora Teosófica a autorização para publicar este conto em nossos websites associados.
 
[2] “Não-ande-por-aí-sozinho” ou “não-coma-carne”. Estas expressões simbólicas significam “tomar decisões por si próprio”, e “buscar a verdade pensando com independência”. (CCA)
 
[3] Um naco de carne vermelha, gotejante. A verdade filosófica nua e crua é pronunciada pela boca dos sábios. Os discípulos diretos, ao ouvir, ficam perplexos. A grama comida pelos carneiros simboliza as ideias convencionais repetidas cautelosamente pelos que temem olhar os fatos de frente. (CCA)
 
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Sobre o crescimento interior e a transformação pessoal no século 21, leia a obra “O Poder da Sabedoria”, de Carlos Cardoso Aveline.
 
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O livro foi publicado pela Editora Teosófica, de Brasília, tem 189 páginas divididas por 20 capítulos e inclui uma série de exercícios práticos. Está na terceira edição.  
 
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