Como a Superstição Doutoral
Produz a Estagnação da Mente
 
 
Lima Barreto
 
 
 
Afonso Lima Barreto (1881-1922)
 
 
 
Nota Editorial de 2020:
 
Reproduzimos a seguir um artigo publicado pela primeira vez no Rio de Janeiro em 1920 e incluído em 1953 no volume “Feiras e Mafuás”, de Lima Barreto, Editora Mérito, São Paulo e Rio de Janeiro, pp. 109-112.
 
É possível alegar que Lima Barreto exagerou em sua crítica à Universidade. Ao invés de serem sumariamente extintos, os cursos superiores devem ser estimulados a desenvolver atividades mais autênticas.
 
O artigo é importante no século 21 pela sua crítica aos aspectos negativos da universidade. Entre eles está a falta de preparação de alunos e professores para a prática do pensamento independente. O interesse materialista das pessoas e das instituições transforma algumas universidades em fábricas de diplomas e doutorados onde pensar por si mesmo é altamente desaconselhável.  
 
A franqueza radical com que escreve Lima Barreto é um exercício de liberdade criativa: o pensador profundo questiona tudo, e a universidade deve ser um espaço de questionamento e autoquestionamento. O ponto de vista adotado no artigo reforça as ideias de Albert Einstein, de Helena Blavatsky e do Visconde de Figanière sobre o tema da educação. Lima Barreto tem muito em comum com Paulo Freire. [1]
 
A ortografia do artigo foi atualizada.
 
Em dois ou três casos, palavras hoje em desuso foram substituídas por termos atuais. Título original do texto: “A Universidade”.
 
(Carlos Cardoso Aveline)
 
A Universidade no Brasil
 
Lima Barreto
 
Voltam os jornais a falar que é intenção do atual governo criar nesta cidade uma Universidade. Não se sabe bem por quê e a que ordem de necessidades vem atender semelhante criação. Não é novo o propósito e de quando em quando, ele surge nas folhas, sem que nada o justifique e sem que venha remediar o mal profundo do nosso chamado ensino superior.
 
Recordação da Idade Média, a Universidade só pode ser compreendida naquele tempo de reduzida atividade técnica e científica, a ponto de, nos cursos de suas vetustas instituições de ensino, entrar o estudo de música e creio mesmo da simples aritmética.
 
Não é possível, hoje, aqui no Brasil, onde essa tradição universitária chegou tão diluída, criar semelhante coisa que não obedece ao espírito do nosso tempo, que quer nas profissões técnicas cada vez mais especialização.
 
O intuito dos propugnadores dessa criação é dotar-nos com um aparelho decorativo, suntuoso, naturalmente destinado a fornecer ao grande mundo festividades brilhantes de colação de grau e sessões solenes.
 
Nada mais parece que seja o intuito da construção da nossa Universidade. 
 
De todos os graus do nosso ensino, o pior é o superior; e toda reforma radical que se quisesse fazer nele, devia começar por suprimi-lo completamente.
 
O ensino primário tem inúmeros defeitos, o secundário maiores, mas o superior, sendo o menos útil e o mais aparatoso, tem o defeito essencial de criar ignorantes com privilégios marcados em lei, o que não acontece com os dois outros.
 
Esses privilégios e a diminuição da livre concorrência que eles originam fazem que as escolas superiores fiquem cheias de uma porção de rapazes, alguns às vezes mesmo inteligentes, que, não tendo nenhuma vocação para as profissões em que simulam estar, só têm em vista fazer exame, passar nos anos, obter diplomas, seja como for, a fim de conseguirem boas colocações no mandarinato nacional e ficarem cercados do ingênuo respeito com que o povo tolo cerca o doutor. [2]
 
Os estudos propriamente de medicina, de engenharia, de advocacia, etc., deviam ficar separados completamente das doutrinas gerais, ciências constituídas ou não, indispensáveis para a educação espiritual de quem quer ter uma opinião e exprimi-la sobre o mundo e sobre o homem.
 
A esse ensino, o estado devia subvencionar direta ou indiretamente; mas o outro, o técnico, o de profissão especial, cada um fizesse por si, exigindo o Estado para os seus funcionários técnicos que eles tivessem um estágio de aprendizagem nas suas oficinas, estradas, hospitais, etc…
 
Sem privilégio de espécie alguma, tendo cada um de mostrar as suas aptidões e preparo na livre concorrência com os rivais, o nível do saber e da eficiência dos nossos técnicos (palavra da moda) havia de subir muito.
 
A nossa superstição doutoral admite abusos que, bem examinados, são de fazer rir.
 
Por exemplo, temos todos nós como coisa muito lógica que o diretor do Lloyd brasileiro [3] deve ser engenheiro civil. Por quê? Dos Telégrafos, dos Correios – por quê também?
 
Aos poucos, na Central do Brasil, os engenheiros foram avassalando os grandes empregos da “gema”.
 
Por quê?
 
Um estudo nesse sentido exigiria um trabalho minucioso de exame de textos de leis e regulamentos que está acima da minha paciência; mas era bom que alguém tentasse fazê-lo, para mostrar que a doutomania não foi criada pelo povo, nem pela avalanche de estudantes que enche as nossas escolas superiores; mas pelos dirigentes, às vezes secundários, que a fim de satisfazer preconceitos e imposições de amizade, foram pouco a pouco ampliando os direitos exclusivos do doutor.
 
Ainda mais. Um dos males decorrentes desta superstição doutoral está na ruindade e na estagnação mental do nosso professorado superior e secundário.
 
Já não bastava a indústria do ensino para fazê-lo mandrião e rotineiro, veio ainda por cima a época dos negócios e das concessões.
 
Explico-me:
 
Um moço que, aos trinta anos, se faz [professor] substituto de uma das nossas faculdades ou escola superior, não quer ficar adstrito às funções do seu ensino. Pára no que aprendeu, não segue o desenvolvimento da matéria que professa. Trata de arranjar outros empregos, quando fica nisso, ou, senão – o que é pior – mete-se no mundo estridente das especulações monetárias e industriais da finança internacional.
 
Ninguém quer ser professor como são os da Europa, de vida modesta, escarafunchando os seus estudos, seguindo o dos outros e com eles se comunicando ou discutindo. Não; o professor brasileiro que ser um homem de luxo e representação, para isso, isto é, para ter os meios de custear isso, deixa às urtigas os seus estudos especiais e empresta o seu prestígio aos brasseurs d’affaires, bem ou mal intencionados.
 
Para quê exemplificar? Tudo isto é muito sabido e basta que se fale em geral, para que a indicação de um mal geral não venha a aparecer como despeito e ataque pessoal.
 
A Universidade, coisa sobremodo obsoleta, não vem curar o mal do nosso ensino que viu passar todo um século de grandes descobertas e especulações mentais de toda a sorte, sem trazer, por qualquer dos que o versavam, um quinhão por mínimo que fosse.
 
O caminho é outro; é a emulação.   
 
13 de março de 1920.
 
NOTAS:
 
[1] Sobre a educação que suprime a vontade autêntica de saber e transforma universidades em  fábricas de diplomas, veja o capítulo (seção) treze da obra “A Chave da Teosofia”, de Helena Blavatsky: especialmente da página 245 em diante na edição que está nos websites associados. Veja ainda o extraordinário capítulo XII do livro “Lettres Japonaises”, do Visconde de Figanière. O educador Paulo Freire (1921-1997) combateu a vida toda a prática da educação como processo mecânico e sem pensamento real. (CCA)
 
[2] Suprimimos aqui do texto central e reproduzimos como nota de rodapé este parágrafo que nos parece pouco compreensível e pode incluir erros graves de transcrição: “Outros que só se destinam a ter título de engenheiro que efetivamente quer ser engenheiro e assim por diante, de forma que o sujeito se dedicasse de fato aos estudos respectivos, não se consegue com um simples rótulo de Universidade ou outro qualquer.” (CCA)
 
[3] Lloyd ou Lóide: companhia estatal de navegação fundada em 1894 e extinta em 1997. (CCA)
 
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O artigo “A Universidade no Brasil” está publicado nos websites associados desde o dia 01 de setembro de 2020. Parte do texto está incluída na edição de agosto de 2012 de “O Teosofista”, pp. 4 e 5.
 
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Sobre a verdadeira inteligência veja “Um Elogio aos Idiotas”. De Lima Barreto, examine “Algumas Ideias Sobre o Carnaval”.
 
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