As Razões Por Que Tantas Igrejas Contrariam a
Escritura e Legitimam a Destruição da Natureza
 
 
Al Gore
 
 
 
 
 
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O texto a seguir é reproduzido da obra
A Terra em Balanço”, de Al Gore, Editora
Augustus, SP, 1993, 447 pp., ver pp. 267-272.
 
Ex-vice-presidente dos Estados Unidos, Al
Gore recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 2007. 
 
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Para alguns, a crise ambiental global é essencialmente uma crise de valores. Desse ponto de vista, a causa básica do problema é o fato de nós, como civilização, fundamentarmos as decisões sobre a relação com o meio ambiente em premissas essencialmente antiéticas. E como a religião é, por tradição, a maior fonte de orientação ética para a civilização, a procura de culpados chegou às principais religiões organizadas.
 
No Ocidente, alguns acusaram – incorretamente, acredito – a tradição judaico-cristã de permitir que a civilização, em seu avanço implacável, dominasse a natureza, começando com a história da criação, no Gênesis, em que é concedido à humanidade o “domínio” sobre a Terra.
 
Em sua forma básica, a acusação é a de que nossa tradição atribui propósitos divinos ao exercício do poder, praticamente absoluto, de impormos a vontade à natureza. Alega-se que, ao contemplar os seres humanos com uma relação inigualável com Deus e a eles delegar autoridade divina sobre a natureza, essa tradição considera éticas todas as escolhas que dão, às necessidades e desejos humanos, prioridade maior que ao restante da natureza. Em poucas palavras, desse ponto de vista, é “ético” garantir que, sempre que constitua um estorvo para conseguir o que desejamos, a natureza saia perdendo.
 
Essa, porém, é uma versão caricatural da tradição judaico-cristã e pouca semelhança tem com a realidade. Os críticos investem contra a religião, pois ela inspira uma atitude arrogante e impiedosa em relação à natureza, mas nem sempre leem os textos pertinentes com a devida atenção. Embora inegavelmente a civilização tenha sido construída sobre a premissa de que podemos usar a natureza para nossos próprios fins, sem pensar no impacto que a ela causamos, não é justo acusar qualquer uma das principais religiões de incentivar essa atitude perigosa. Na verdade, todas impõem uma responsabilidade ética de proteger a integridade do mundo natural e por ela zelar.
 
Na tradição judaico-cristã, o conceito bíblico de domínio é muito diferente daquele de dominação – e esta diferença é crítica. Especificamente, cabe, aos seguidores dessa tradição, a tarefa de administrar, pois a mesma passagem bíblica que lhes dá “domínio” também exige que “cuidem” da terra mesmo quando a “exploram”. A incumbência de administrar e a concessão de domínio não são conflitantes; ao reconhecerem a santidade da criação, os fiéis são exortados a lembrar-se de que mesmo enquanto “lavram” a terra, devem “conservá-la”.
 
Isso há muito está claro para aqueles que têm dedicado a vida a essas tarefas. Richard Cartwright Austin, por exemplo, pastor presbiteriano que trabalha entre os pobres na região dos montes Apalaches, relata sua experiência em tentar deter a mineração irresponsável:
 
“Cedo aprendi, em meus anos de ministério na região dos Apalaches e no início de minha luta contra a mineração no sudoeste da Virgínia, que a única defesa das montanhas contra a destruição causada pelas máquinas de terraplanagem pertencentes aos conglomerados de energia são as pessoas pobres que vivem isoladas naqueles vales, tão profundamente apegadas à terra que até lutariam por ela. Tirem-nas de lá e as montanhas ficarão totalmente indefesas… Do ponto de vista bíblico, a natureza só está a salvo da poluição e colocada em uma relação moral segura quando unificada com pessoas que a amam e cuidam dela.”
 
No mundo todo, os esforços para deter a destruição do meio ambiente têm sido feitos principalmente por pessoas que reconhecem os danos que estão sendo causados naquelas regiões sobre as quais elas próprias têm “domínio”. Lois Gibbs e os outros moradores de Love Canal, Christine e Woodrow Sterling e sua família, no oeste do Tennesse, cujo poço ficou com água envenenada, “Harrison” Gnau e os povos indígenas da floresta tropical Sarauak, no leste da Malásia, Chico Mendes e os seringueiros do Amazonas, os pescadores desempregados do Mar de Aral – todos começaram sua luta para salvar o meio ambiente motivados pela aliança entre domínio e administração em seu coração. Essa é exatamente a relação entre a humanidade e a Terra exigida pela ética judaico-cristã.
 
Em minha própria experiência e formação religiosas – sou batista -, o dever de cuidar da Terra está enraizado na relação fundamental entre Deus, a criação e a humanidade. No Livro do Gênesis, o judaísmo ensinou que, após criar a Terra, Deus “viu que era bom”.
 
No Salmo 24, aprendemos que ao “Senhor pertence a Terra e tudo o que nela se contém”. Em outras palavras, Deus se agrada de Sua criação, e “domínio” não significa que a Terra pertence à humanidade; pelo contrário, tudo o que é feito na Terra deve ser feito com a consciência de que pertence a Deus.
 
Minha tradição também ensina que a finalidade da vida é “glorificar a Deus” e judeus e cristãos compartilham a convicção de que devem “praticar a justiça, amar a misericórdia e andar humildemente com seu Deus”. Contudo, sejam quais forem os versículos selecionados, com o intuito de conferir precisão à definição judaico-cristã da finalidade da vida, essa finalidade é evidentemente incompatível com a destruição irresponsável daquilo que pertence a Deus e que Deus viu como “bom”. Como pode alguém glorificar o Criador enquanto desrespeita a criação? Como pode alguém ser humilde perante o Deus da natureza enquanto a destrói?
 
A história de Noé e da arca é mais uma prova da preocupação do judaísmo com a administração. Deus ordena a Noé que leve em sua arca pelo menos dois animais de cada espécie para salvá-los do Dilúvio – ordem essa que hoje poderia ser enunciada da seguinte forma: “Preservarás a biodiversidade”. Terá a ordem de Deus, na verdade, nova relevância para aqueles que partilham a crença de Noé neste momento de outra catástrofe mundial, desta vez causada por nós? Noé acatou essa ordem e, depois de ele e sua família, bem como um remanescente de cada espécie viva sobreviverem ao Dilúvio, Deus fez com ele um novo pacto, reiterando Sua promessa para a humanidade. Entretanto, em geral não se dá atenção à segunda parte da promessa de Deus, feita não só a Noé, mas também a “todas as criaturas vivas”, reafirmando a santidade da criação que Ele promete salvaguardar na “semeadura e na colheita, no frio e no calor, no verão e no inverno”. Era a promessa de nunca mais destruir a Terra com dilúvios que, de acordo com o Gênesis, é a mensagem simbolizada por todo arco-íris.
 
Apesar da mensagem que se evidencia, a partir de uma leitura atenta dessas e de outras escrituras, os críticos têm sido ouvidos, em parte devido ao enorme silêncio com que a maioria das denominações religiosas têm reagido aos indícios crescentes de um holocausto ecológico. Além disso, em nada colabora a atitude de alguns líderes religiosos, que parecem incentivar a irresponsabilidade ecológica.
 
Lembro-me de ter ouvido, de olhos fechados e cabeça baixa, a prece por um novo projeto de construção, em que o pastor citou nosso “domínio sobre a Terra” e, em seguida, pôs-se a enumerar, com grande deleite, cada um dos instrumentos de agressão ambiental de que se recordava, de máquinas de terraplanagem e retroescavadeiras a serras de cadeia e rolos compressores a vapor, como se fossem ferramentas fornecidas por Deus, que deveríamos usar desregradamente na transformação da Terra pelo simples prazer de fazê-lo. As duas atitudes – omissão frente o desastre e entusiasmo irracional por mais degradação – em nada contribuem para melhorar a imagem caricatural de uma fé empenhada em subjugar a natureza.
 
Felizmente, tornou-se evidente, há algum tempo, que um grande movimento pela proteção da Terra está bem ativo nas igrejas, e muitos líderes religiosos hoje estão fazendo soar o alarme. Porém, até agora, parecem relutantes em emprestar sua autoridade moral ao esforço de salvar a Terra. Por quê?
 
Deve-se dizer, em sua defesa, que eles têm enfrentado dificuldades idênticas às nossas em reconhecer esse modelo inédito de destruição, em compreender a natureza estratégica da ameaça e em perceber a mudança profunda e repentina na relação entre a espécie humana e o meio ambiente. Contudo, sua passividade torna-se particularmente inquietante pelo fato de as Escrituras Cristãs transmitirem uma mensagem tão acentuadamente ativista.
 
Para mim, ela encontra expressão perfeita em uma das parábolas de Jesus, relatada em três dos quatro evangelhos, a Parábola do Servo Infiel. O dono da casa, preparando-se para partir em viagem, confia a casa a seu criado, dando-lhe instruções precisas para permanecer alerta, caso, em sua ausência, vândalos ou ladrões tentem saqueá-la. O criado recebe ordens explícitas quanto a sua obrigação de proteger a casa contra eles, mesmo se estiver dormindo – e o fato de estar dormindo não será uma desculpa aceitável.
 
A parábola dá margem a uma pergunta óbvia: se a terra é do Senhor e seus servos têm a responsabilidade de cuidar dela, como enfrentaremos o vandalismo global que hoje causa esta destruição sem precedentes? Estamos dormindo? Essa é agora uma desculpa aceitável?
 
Entretanto, há algo mais acontecendo na religião organizada. Muitos daqueles que, em outras circunstâncias, poderiam estar na vanguarda da resistência a essa violenta investida estão preocupados com outros assuntos importantes. Por exemplo, os teólogos e clérigos cristãos, que tradicionalmente apoiam diretrizes políticas liberais, herdaram um conjunto específico de preocupações definidas, no início do século, como o Evangelho Social. Segundo essa visão humanitária do papel da Igreja, os seguidores de Cristo devem dar prioridade às necessidades dos pobres, dos desvalidos, dos doentes e fracos, das vítimas de discriminação e ódio, da esquecida massa humana triturada pelas engrenagens da civilização industrial.
 
A imposição moral ligada a esse conjunto de prioridades leva muitos defensores do Evangelho Social a opor forte resistência à introdução de preocupações antagônicas, por eles encaradas como distrações que lhes desviam a atenção da tarefa estabelecida, diluindo os recursos – já onerados por encargos -, de dinheiro, tempo, autoridade moral e labuta emocional. Afinal, como problema, “o meio ambiente” às vezes parece bem distante dos pecados mais palpáveis da injustiça social.
 
Por outro lado, teólogos e clérigos politicamente conservadores herdaram diretrizes diversas, também definidas no início do século. O “comunismo ateísta”, contra o qual investem há décadas, é, para eles, apenas a manifestação mais radical de um impulso estatista de desviar preciosos recursos – dinheiro, tempo, autoridade moral e labuta emocional -, da missão da redenção espiritual, para uma alternativa idólatra: a busca da salvação por meio de um grande reordenamento do mundo material.
 
Como resultado, encaram com profunda desconfiança qualquer esforço que vise concentrar-lhes a atenção moral em uma crise no mundo material, que poderia exigir, como parte da solução, o novo exercício de algo que se assemelhasse à autoridade moral do estado. E a perspectiva de ação conjunta por parte de governos do mundo, compreensivelmente, exacerba seus medos e desconfianças.
 
Assim, com ativistas tanto de esquerda como de direita resistindo à inclusão do meio ambiente em sua lista de preocupações, o problema não tem recebido dos líderes religiosos, a devida atenção. Isso é lamentável, pois a preocupação a ele subjacente condiz com o ponto de vista teológico de ambos e, fato igualmente importante, esse problema lhes fornece uma rara oportunidade para se encontrarem em terreno comum.
 
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O artigo “Ecologia: as Igrejas Contra a Bíblia?” foi publicado nos websites associados dia 15 de setembro de 2019.
 
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