Sou Livre na Medida Em
Que Consigo Criar a Mim Mesmo
 
 
Jean des Vignes Rouges
 
 
 
A flor «snowdrop» (gota-de-neve, floco-de-neve), prepara secretamente as suas energias sob
a camada de gelo do solo, até o momento em que irrompe à luz do dia. A flor simboliza pureza.
 
 
 
Jamais esgotarei as minhas
possibilidades de renovação, enquanto
tiver a capacidade de imaginar o melhor.
 
 
 
Devo encorajar vocês a pensar filosoficamente sobre a vontade em geral? Estou em dúvida, porque é preciso admitir que existe uma certa incompatibilidade entre pensamento e ação.
 
O homem de ação é aquele que diz: “Estou com fome” e imediatamente vai à caça. O homem pensador, nas mesmas circunstâncias, pergunta a si mesmo: “Como e por que motivo tenho fome?” A questão lhe interessa tanto que esquece de caçar. E também corre o risco de morrer de inanição.
 
Mesmo que o pensador não chegue a este extremo infeliz, muitas vezes fica excessivamente inclinado a examinar problemas que atrasam a sua ação. Tem prazer em tratar de ver claramente dentro de si. Faz perguntas ansiosas a si mesmo, aspira a obter provas e chegar ao fundo das questões; quer dominar o inalcançável. Em suma, ele procura o absoluto. Isso o torna um indivíduo simpático, certamente, mas falta a ele um pouco de velocidade nos caminhos que atravessa na vida.
 
Vocês entendem, portanto, a minha cautela. Prometi fazer de vocês homens de ação [1] que, usando uma caneta, uma espátula ou picareta, construam algo grande. Não gostaria que vocês me acusassem, um dia, de não ter ensinado nada além de detalhes insignificantes.
 
Mas eu teria ainda mais remorsos se contribuísse – por modesta que seja a minha influência – para transformar vocês em animais treinados, capazes de buscar apenas os objetivos materiais indicados pelo instinto.
 
Por esse motivo recomendo a vocês que “filosofem” sobre esse conjunto de regras, de condutas, e sobre os julgamentos, as ideias e tendências que constituem o seu comportamento voluntário.
 
Neste “exercício”, já não se trata mais de buscar ideias com finalidade utilitária, mas sim de pensar de forma desinteressada, de avaliar sinceramente a si mesmo e os outros, as circunstâncias e a vida; de tentar trazer para cima da mesa a verdade em geral, ou simplesmente anotar uma ideia curiosa, pitoresca, original, ou que você julgue ter estas características. Às vezes, até as ideias que os acontecimentos do dia lhe sugerem podem assumir a forma de uma humilde confissão: e isso não será menos instrutivo.
 
O seu espírito, ao se dedicar a essa tarefa, ganhará altura. Você sentirá crescer dentro de si aquela capacidade de “dominar a questão” que é a marca de uma inteligência forte. Você se acostumará a prestar atenção às nuances, e talvez também a olhar a vida de uma forma mais coerente. É possível que, além disso, a sua mente fique mais serena.
 
Mas é inútil continuar falando das vantagens da filosofia. Basta reproduzir aqui, não como modelos a admirar mas como encorajamento para fazer o melhor possível, alguns dos pensamentos que anotei no meu próprio caderno da vontade. [2]
 
* * *
 
Por que a tarefa de construir a minha vontade me fascina? Porque cada vitória que eu conquisto me estimula a desejar outra vitória maior. Ao progredir num “exercício de treinamento”, gosto de pensar que amanhã farei outro ainda mais difícil!
 
Não há por que temer o perigo do tédio! O meu ideal de ser humano voluntário se modifica e cresce na mesma velocidade dos meus esforços. Jamais esgotarei as minhas possibilidades de renovação, enquanto tiver a capacidade de imaginar o melhor. Ora, ninguém renuncia a imaginar o melhor.
 
* * *
 
Você quer me explicar que a força original da minha vontade é apenas um feixe de forças elementares, bastante humildes, que você vai enumerar detalhadamente.
 
Pare! Se eu cometesse a idiotice de escutar a sua demonstração, a minha vontade, tendo perdido a autoridade do mistério, não seria mais que um fantasma. Eu deixaria de existir no mesmo momento que ela.
 
* * *
 
O ideal de alguns só serve para desprezar o ideal dos outros.  
 
* * *
 
O seu trabalho diário! Esforce-se para descobrir, nas ações mais monótonas da vida, fatores estimulantes capazes de elevar você a uma compreensão dramática do mundo.
 
* * *
 
Aquela vontade cósmica, o coração do Universo, cujo drama metafísico foi narrado por Schopenhauer, não é o que sinto tremendo nos nervos nesta hora em que as alegrias da primavera me exaltam? Quero que o Sol cumpra minha vontade. Faça florescer uma margarida aqui a meu lado!
 
Você se orgulha das suas virtudes e nega os seus defeitos. No entanto, tanto uns como os outros são filhos da sua carne.
 
Sim, mas os meus erros são derivações rebeldes que ainda não tive tempo de transformar em virtudes. Espere um pouco, estou trabalhando nisso.
 
* * *
 
Não há fronteira definida entre o ser humano que eu sou e o personagem social que pareço ser. Este último, que eu escolho, dissolve-se pouco a pouco no primeiro. Mas, através da escolha, a minha vontade é afirmada.
 
* * *
 
Pergunta: Ao esculpir seu próprio caráter com tanto esforço, você tem certeza de que está criando um homem superior e melhor àquele homem moldado pelas circunstâncias, pela pressão social, e pelo acaso?
 
Resposta: Pelo fato de que o meu trabalho corre o risco de ser imperfeito, deveria eu avançar em linha reta na direção do nada?
 
* * *
 
Estou tentando esclarecer as diferenças entre a vontade do homem primitivo e a do homem da camada social que é capaz de pensar, hoje em dia. [3]
 
– Não há diferença, segundo me dizem; é sempre a mesma preocupação de garantir o alimento.
 
– Você está brincando! Na verdade, existe uma espiritualização progressiva dos modos de querer. O homem do futuro talvez pense em nós com uma piedade afetuosa; ele perceberá que foram os nossos esforços infantis, tateantes e desajeitados que o elevaram às alturas radiantes da vontade vitoriosa.
 
* * *
 
Está nevando desde o amanhecer. Ao ar livre, os esqueletos escuros das árvores desaparecem gradualmente sob o branco fúnebre. O dia morre asfixiado, sem um espasmo, sem uma palavra.
 
Penso no grande silêncio gelado que talvez um dia se instale na Terra. Nada conservará a memória nem sequer dos pensamentos humanos mais preciosos…
 
No meu quarto, a pergunta “qual é o sentido?” vibra e desce lentamente; em breve eles enterrarão meu corpo.
 
Este é o momento certo para evocar com obstinação o trabalho da flor “snowdrop”, que, sob a camada gelada do solo, prepara secretamente as suas energias.
 
* * *
 
A melancolia, a modéstia, a humildade de espírito, que belas máscaras da preguiça e da indiferença que diz “não me importo”! Você deve acreditar na relatividade de tudo e agir como um campeão defensor do absoluto.
 
* * *
 
A minha vontade é, então, uma tirania? Ela está tentando mutilar a minha personalidade? Não, porque, precisamente, a essência da ação da vontade é a preocupação de harmonizar todas as minhas tendências, reconhecendo em cada uma delas a sua parte legítima.
 
* * *
 
Graças a um esforço de longo prazo, cuidadoso e detalhado, desenvolvi uma qualidade da qual me orgulho. Percebo hoje que alguém a meu lado possui esta qualidade em grau maior do que eu, sem ter enfrentado dificuldade alguma para obtê-la. Que força de vontade devo, então, desenvolver para curvar-me graciosamente diante deste fato! Mas se eu consigo aplaudir, posso sorrir outra vez.
 
* * *
 
Em resumo, educar a vontade é instalar em si mesmo uma paixão por querer. Como se faz isso?
 
Como o apaixonado! Ele esquece rapidamente o “amor à primeira vista” que teve, mas prolonga a emoção. Ele ressuscita dentro de si a deliciosa impressão experimentada, e o fogo vence.
 
A paixão por querer obedece à mesma lei. Se, depois de ter desejado, eu me esforço para redescobrir dentro de mim o sabor poderoso da vontade em ação – essa estranha sensação de crescimento da minha personalidade – e se medito sobre a origem desta alegria sutil, a paixão por querer me invadirá.
 
Todas as combinações de gestos, de ideias, de símbolos e procedimentos que constituem um método de educação da vontade, são bastante parecidas com as ações, os buquês de flores, os elogios, as declarações e atitudes fetichistas do apaixonado.
 
A diferença é que a vitória, aqui, significa colocar, no pedestal da alma, a imagem mais nobre e mais pura de si mesmo que se possa imaginar.
 
* * *
 
Hoje não persigo defeitos, nem conquisto qualidades; minha vontade exige que eu aproveite tranquilamente o momento presente. Nas formas visíveis das nuvens que passam, percebo o jogo de forças invisíveis. Como um turista que se diverte, exploro o meu universo interior.
 
* * *
 
Vontade! Será que a vontade é o endurecimento da alma? A cristalização das ideias? A prisão dos sentimentos? Não! Exatamente ao contrário, é um esforço para escapar do atoleiro dos hábitos. É a exploração do Universo. É ter o braço estendido amorosamente na direção da vida.
 
* * *
 
Concentrar a minha necessidade animal de expansão e dominação, sem diminuir o meu impulso. Manter a minha ambição, sem qualificá-la como baixa. Não paralisar minhas forças através de uma perspicácia que se tornou zombeteira? … Chegou a hora de orar, e de pedir pela presença da graça.
 
* * *
 
Só os santos em êxtase, em união mística com Deus, sabem verdadeiramente o que é uma vontade que se elevou pelo entusiasmo.
 
Ressuscitar sua vontade a cada momento, que esforço! Mas que desafio emocionante também!
 
* * *
 
Aceitar o medo às vezes é uma forma de coragem, pois nos permite sentir o perigo que se aproxima e estar prontos para enfrentá-lo.
 
* * *
 
Sou livre na medida em que consigo criar a mim mesmo.
 
* * *
 
Meu ideal! Um sonho acordado inútil, enquanto não inventar os meios de realizá-lo.
 
* * *
 
Se você tem bolhas nos pés, darei cinco minutos para você sonhar que está escalando o Himalaia. Depois, cumpra os seus deveres e cuide das suas bolhas!
 
* * *
 
Perguntar-se com o coração batendo: Sou capaz de conseguir isso? E ouvir dentro de você a resposta de uma voz secreta: Sim! Que trovão e relâmpago atravessam o mundo!
 
* * *
 
Não tenho necessidade dos seus artifícios, diz alguém. Ando sem muletas; minha vontade se alimenta, se aquece e se ilumina por si mesma. Muito bem! Mas você tem certeza de que não está confundindo vontade com orgulho?
 
* * *
 
Querer é saborear a beleza da vida com base na intuição do contentamento.
 
* * *
 
Sentir dentro de mim a presença secreta de uma vontade que, vinda do infinito, tem objetivos ilimitados! Ouça o som da corrente vital que passa! Que sensações de enobrecimento!
 
* * *
 
Um esforço especial da vontade: suportar as exigências legítimas da vontade dos outros, incluindo as da sua esposa.
 
* * *
 
Você quer comprovar definitivamente a força da sua vontade? Exalte, então, os altos méritos de quem compete com você, e fale humildemente sobre a sua própria mediocridade. Mas não exagere: há tantos imbecis que acabariam por acreditar em você!
 
* * *
 
É fácil decidir que você irá conquistar o Universo inteiro. Mas ouvir com um sorriso as palavras mal-humoradas do porteiro rabugento do seu prédio – isto sim, é uma proeza.
 
* * *
 
É importante para minha vida pensar seriamente sobre esta questão. Começo a fazer isso. Um problema pequeno surge, de repente, em meus pensamentos. Vamos examiná-lo! Não. No fundo de mim, uma covardia cúmplice acolhe a novidade. E aqui fico feliz por pensar em uma diversão. Estou fugindo.
 
* * *
 
A pior forma de força de vontade: o gosto de abusar dos outros. Deste modo acabamos por perseguir a nós mesmos.
 
* * *
 
Esperar por isto e aquilo! Aqui está a minha vontade, presa. Ela gosta muito disso, a idiota.[4]
 
* * *
 
Estou trabalhando para fortalecer minha vontade. Admito que tenho uma insatisfação perpétua comigo mesmo? E uma condenação do momento presente? Sim. Mas também, que amor pelo futuro, por aquele futuro que vou criar!
 
* * *
 
Aquele sujeito é tiranizado pelos seus chefes, pelos seus colegas, pelos seus pais, pela sua empregada, e pela sua esposa. Ele está em silêncio. Paciência admirável, pensam alguns. Uma preparação secreta para a vingança, dizem os outros. Mas ele é apenas um pobre homem que não sabe para que santo deve rezar.
 
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Você é infeliz! Sem dúvida, porque gasta o seu tempo lamentando o que não possui, e não trata nunca de amar o que possui.
 
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Quando as nossas ações têm bom resultado, experimentamos o sabor poderoso da vitória. Mas isso surge da ilusão de pensar que eliminamos para sempre o sofrimento atual, ou o sofrimento futuro.
 
* * *
 
Felicidade é estar pronto para qualquer tarefa, e enfrentá-la como quem disputa um jogo.
 
* * *
 
Contribuir para o desenvolvimento da vontade dos outros, não é uma forma de garantir a posteridade?
 
NOTAS:
 
[1] Veja outros escritos de Jean des Vignes Rouges. (CCA)
 
[2] Examine “O Caderno da Vontade”. (CCA)
 
[3] “Camada social que é capaz de pensar”. No original, “elite”. Quando este artigo foi publicado pela primeira vez, nos anos 1940, a palavra “elite” podia significar “as pessoas mais esclarecidas e éticas” de uma sociedade. No século 21, o termo tem um significado quase sempre ofensivo e já não pode ser usado da mesma maneira. (CCA)
 
[4] Seja por medo ou preguiça, a postergação dos deveres é um vício cômodo. Neste exato momento, que ações úteis e oportunas eu estou postergando sem necessidade? Cabe desenvolver a capacidade de perceber o tempo certo para fazer a coisa certa. (CCA)
 
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O texto “Filosofia da Vontade” foi publicado nos websites da Loja Independente de Teosofistas dia 25 de fevereiro de 2024. Trata-se de uma tradução, do livro «Dictionnaire de la Volonté», de Jean des Vignes Rouges, Éditions J. Oliven, Paris, 320 pp., 1945, pp. 224-230. O artigo original em francês está disponível online: Philosophie de la Volonté. A tradução é de CCA.
                                     
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