Pomba Mundo
 
Paz Mundial Deve Começar em
Silêncio no Coração de Cada Um
 
 
Carlos Cardoso Aveline
 
 
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“As bombas se empilham nas fábricas, a polícia percorre as cidades, as mentiras fluem pelos alto-falantes, mas a terra continua girando em torno do sol, e nem os ditadores, nem os burocratas, por mais que desaprovem o processo, são capazes de evitá-lo.” [1]
 
Publicadas em meados do século 20, essas palavras do escritor inglês George Orwell estão perfeitamente atuais na primeira metade do século 21. 
 
Enquanto escrevo, a civilização atual vive uma transição dolorosa, e avança como sonâmbula na direção de um futuro que poucos conhecem. As tensões políticas, econômicas, ambientais e militares parecem fortes. Há uma ansiedade no ar. O tamanho da crise não deve ser exagerado. Apesar do círculo fechado de conflitos humanos e das preocupações de curto prazo que se eternizam, a imensa Terra ainda gira em torno do Sol. O poder da natureza continua incomparável. A vida cósmica se desdobra graciosamente ao longo de eras incontáveis, enquanto abraça bilhões de estrelas luminosas.
 
Posso contemplar o infinito no céu acima de mim, assim como faziam meus avós e meus ancestrais ainda mais distantes. Nenhuma lei me proíbe fazer uma oração ou meditar, enquanto meu olhar contempla as nuvens iluminadas pelo sol vermelho que se oculta na linha do horizonte.
 
Não tenho forças para impor a paz neste ou naquele país. Posso aceitar minha insignificância. Está ao meu alcance ser solidário com as plantas, os animais e as pessoas a meu redor. Os amigos da paz não conseguem impedir as guerras econômicas ou militares. Eles podem criar justiça e harmonia nas situações em que vivem diretamente, e isso talvez seja sua melhor contribuição para o futuro.
 
Nem todos os fatos externos dependem da minha vontade pessoal. Meu primeiro dever e minha principal oportunidade para agir como cidadão do mundo é estabelecer humildemente uma paz verdadeira em meus pensamentos e sentimentos.
 
Posso concentrar minha consciência no que é bom. Isso torna mais fácil agir de maneira construtiva. Nada me impede de aceitar a vida como ela é ou de aumentar minha capacidade de amar e de ser feliz, de identificar a verdade e viver de maneira correta.
 
“Melhor do que o ouro é a sabedoria”, diz a Bíblia em Provérbios, 16:16-18: “e adquirir discernimento é melhor que a prata. A arrogância vem antes da ruína, e o espírito altivo abre caminho para a queda.”
 
A paz mundial deve começar em silêncio no coração de cada um. Só depois ela se irradia para a vida prática externa. Alimentar ódio contra quem promove guerras é pior que inútil, porque tudo começa no pensamento. É melhor ser criativo e plantar ações e sentimentos de solidariedade nas situações reais que dependem de mim.
 
O ser humano tem dentro de si um centro imortal de paz e equilíbrio. A voz desse centro, que é a voz da razão, não grita. Ela fala por sussurros. A mente turbulenta e agitada deve fazer silêncio para que ela se faça ouvir. Sigmund Freud escreveu:
 
“A voz do intelecto é suave, mas não descansa enquanto não consegue uma audiência. Finalmente, após uma incontável sucessão de reveses, ela obtém êxito. Esse é um dos pontos sobre os quais se pode ser otimista a respeito do futuro da humanidade, e, em si mesmo, não é de pouca importância.”[2]
 
A voz da razão vem falando aos corações há muito tempo, e ganha cada vez mais nitidez. O Dhammapada, que registra o ensinamento dado por Gautama Buddha há 2500 anos, afirma logo nos seus primeiros versos:
 
“Nesse mundo a inimizade nunca é eliminada pelo ódio. A inimizade é eliminada pelo amor. Essa é a Lei Eterna.” [3]
 
E quinhentos anos depois de Buddha, Jesus acrescentou:
 
“Vocês ouviram o que foi dito: ‘Amem o seu próximo e odeiem o seu inimigo’. Eu, porém, digo a vocês: ‘Amem os seus inimigos e orem pelos que perseguem vocês; desse modo vocês se tornarão filhos do seu Pai que está nos céus, por que ele faz nascer o seu sol igualmente sobre maus e bons, e faz cair a chuva sobre justos e injustos’.” (Mt 5:43-45)
 
Amar nossos inimigos significa ser corretos e justos com eles. Temos o direito de afastar-nos de quem nos agride e de preservar nosso sossego, mas devemos respeitar a todos os seres.
 
A sabedoria eterna recomenda construir o que é correto, fundamentalmente, e só secundariamente combater o que está errado. Os sentimentos de revolta e rancor não são bons conselheiros. Embora seja indispensável ter espírito crítico, ele deve ser exercido com serenidade e sem apego.  
 
O que fazer com os sentimentos de frustração? Quando me vejo como uma criança, psicologicamente, eu exijo ser compreendido e ajudado, e não dou importância a compreender ou ajudar. É a autoestima, a percepção de que há algo absolutamente valioso dentro de mim, que me permite deixar de lado a luta neurótica pela autoafirmação. Quando o centro de paz e os sentimentos de solidariedade despertam em meu coração, o afeto surge em direção aos outros de maneira incondicional.
 
Podemos estar insatisfeitos com essa ou aquela situação particular, mas temos fortes motivos para ser gratos à vida. Tudo o que somos é resultado da ajuda de outras pessoas. Desde o nascimento fomos auxiliados a cada passo. A casa que habitamos, a roupa que vestimos, nosso alimento, tudo é resultado do apoio de outras pessoas e do trabalho de incontáveis gerações anteriores. Até mesmo a pior das sociedades humanas só existe enquanto há auxílio recíproco entre seus membros. Por isso, a competição é um aspecto menor na natureza. A cooperação é a lei.
 
Se eu quisesse fazer uma lista completa das pessoas que me ajudaram na vida, não conseguiria. Poucos, entre os que me ajudaram, receberam meu agradecimento sincero. Alguns me salvaram de graves perigos, outros me deram solidariedade em situações dolorosas, e não tenho como retribuir seus gestos. Por que, então, eu chamaria de ingrato a quem ajudo sem receber agradecimento? Quantas vezes fui eu o ingrato? Há muita gente a quem posso pedir perdão. A quantos magoei intencionalmente, movido pela raiva? E a quantos mais magoei sem querer e com a melhor das intenções, errando pela minha ignorância?
 
O motivo prático para perdoar e pedir perdão em minhas orações e meditações é simples. Um dos principais beneficiados com isso sou eu mesmo. Quando tenho a autoestima necessária para perdoar e pedir perdão sinceramente, eu me liberto de mágoas imensas e de apego ao passado. Então certos pesos insuspeitados desaparecem do meu subconsciente. Meu pensamento pode chegar de algum modo até a alma que fiz sofrer um dia e libertá-la de uma parte das suas dores. Ao mesmo tempo, eu me liberto pelo menos em parte do peso do erro em minha consciência. Fico mais leve e mais apto para ser feliz. 
 
Também posso perdoar, no templo do meu coração, aqueles que me magoaram. Isso deve acontecer naturalmente, e não por obrigação. William Shakespeare escreveu, em 1597:
 
“O perdão não pode ser forçado. Ele cai do céu como uma chuva suave. Ele é duplamente abençoado, porque eleva a quem dá e a quem recebe. O perdão é mais forte nos poderosos, e coloca um monarca acima da sua coroa. Seu cetro lhe dá a força do poder temporal e é símbolo da reverência e da majestade, do respeito e do medo que os reis inspiram; mas o perdão paira muito acima do poder formal, pois seu trono se afirma no coração dos reis e é um atributo divino – e o poder terreno se mostra quase divino, quando a justiça se associa ao perdão.”[4]
 
Frequentemente esperamos e exigimos demais das pessoas. Criamos expectativas exageradas. E isso nos torna incapazes de mostrar gratidão, de reconhecer qualidades, ou mesmo de ter uma dose razoável de tolerância em relação aos erros dos outros. Desse modo, relacionamentos agradáveis passam a ser fonte de sofrimento. O escritor peruano Julio Ramón Ribeyro formulou uma tese pessoal a esse respeito:
 
“Não se deve exigir das pessoas mais de uma qualidade. Se encontramos uma qualidade nelas, já devemos sentir-nos gratos e julgá-las por ela, e não pelas que lhes faltam. É errado exigir que uma pessoa seja simpática e também generosa, ou que seja inteligente e também alegre, ou que seja bonita e também leal. Aceitemos dela o que ela pode dar-nos. Que a sua qualidade positiva seja o caminho privilegiado através do qual nos comunicamos e nos enriquecemos.”[5]
 
Para evitar conflitos desnecessários, é útil distinguir o que se vê do que se faz. São duas coisas diferentes. É saudável ter uma visão ampla e universal da vida, mas nossa ação prática deve ser clara, pontual e definida. O pensador romano Terêncio escreveu:
 
“Tudo que é humano me diz respeito.”
 
Esse pensamento é sábio. De fato, cada coisa se relaciona com todas as outras, no vasto cosmo. Como escreveu Victor Hugo em “Os Trabalhadores do Mar”, pode-se dizer que as praias do norte da Europa sentem o impacto das ondas de mar do sul da África. É sensato, portanto, que eu tente compreender todas as coisas, e especialmente as leis que regem tanto o universo como a minha pequena existência pessoal. Mas qual é minha tarefa?
 
Qual a minha vocação natural? Meu dever é administrar bem aquilo que está a meu alcance, e não pretender controlar o que não depende de mim. “Pensamento global, ação local”, diziam os ecologistas durante a década de 1980. Quando pretendo agir sobre algo que está fora do meu alcance, fracasso. Quando faço com eficiência o bem o que está dentro dos limites do possível, minha boa ação acaba tendo consequências benéficas até mesmo para situações distantes.
 
Na medida em que descobrimos o caminho da sabedoria e mantemos um espírito prático diante da vida, certas coisas começam a perder valor para nós. A simplicidade pessoal nos ensina a abrir mão do que é secundário.
 
Não existe aqui uma renúncia forçada, feita por obediência cega a um mestre ou uma escritura sagrada. Vemos as coisas como elas são, e evitamos o caminho do autoengano, antes de sermos traiçoeiramente surpreendidos pela desilusão.
 
Isso não se consegue da noite para o dia. A caminhada da alma humana avança sem pressa e sem pausa, e inclui um período de tempo que bem poderíamos considerar uma eternidade. Mas cada passo dado no caminho amplia o horizonte, alivia o sofrimento e nos torna interiormente mais felizes.
 
Devemos ser modestos. Estamos, como humanidade, na pré-história da nossa felicidade. Avançamos lentamente para um futuro abençoado de fraternidade universal, em que teremos esquecido o tempo da guerra e da injustiça. Enquanto isso, a terra continua girando, bela e azul em torno do Sol da luz eterna. 
 
NOTAS:
 
[1] “Cazando un Elefante”, de George Orwell, Editorial Guillermo Kraft, Buenos Aires, 1955, 200 pp., ver p. 196.
 
[2] “O Futuro de Uma Ilusão”, de Sigmund Freud, Ed. Imago, RJ, p. 83.
 
[3] Veja o Capítulo 1, versículo 5, de “O Dhammapada”. A obra está disponível na íntegra em nossos websites.
 
[4] “O Mercador de Veneza”, Cena I, Ato IV. Para traduzir o trecho, comparei o original em inglês (“Complete Works”, Magpie Books, Londres, 1992) com a edição das obras completas de Shakespeare, Edições Melhoramentos, SP, volume III, tradução de Carlos Alberto Nunes, pp. 173-174. 
 
[5] Citado em “Serenidad”, obra de Alberto Briceño Polo, Sairam Editores, Lima, Peru, 298 pp. em formato de bolso, ver pp. 90-91.
 
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O texto “O Perdão Que Transcende o Conflito” é reproduzido da edição de novembro de 2014 de “O Teosofista”. Uma versão inicial do artigo foi publicada em maio de 2003 pela revista “Planeta”, de São Paulo, sob o título de “Amor e Perdão: o Caminho Para a Paz”.
 
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Sobre o mistério do despertar individual para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.
 
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Com tradução, prólogo e notas de Carlos Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos, 85 páginas, e foi publicada em 2014 por “The Aquarian Theosophist”.
 
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