Propondo Um Modo Fraterno de Viver
 
 
Radha Burnier
 
 
 
Radha Burnier (1923-2013)
 
 
 
O mundo moderno está descobrindo, através de um processo lento e penoso, que todas as formas de vida desta Terra estão interligadas. Quando destruímos florestas ou mesmo insetos, fazemos mal a nós mesmos, porque provocamos sem saber uma mudança climática ou impedimos a polinização, causando assim circunstâncias adversas a nosso próprio bem-estar. Mas lentamente, depois de haver causado muito dano, o pensamento ecológico está voltando-se para a não-destruição e o vegetarianismo.
 
Os povos antigos, no entanto, conheciam a verdade da unidade da vida intuitivamente, e, portanto, de modo claro. Eles defendiam um modo de vida não-destrutivo, indicado pela palavra ahimsa. Eu sou vegetariana, em primeiro lugar, porque sei claramente, em meu coração, que toda vida é sagrada e parte de uma única Existência. Quando alguém sente isto, nada pode persuadi-lo a ferir ou destruir. A razão também nos diz que quando matamos e nos alimentamos de outras criaturas, são criados muitos problemas, não só ecológicos, mas problemas de saúde e outros. Mas estes são secundários.
 
As pessoas que se tornam vegetarianas por razões médicas poderiam retornar à dieta carnívora se as teorias médicas mudassem. Assim, novas ideias poderiam derrotar o atual ponto de vista ecológico. Mas nada pode mudar a percepção intuitiva da natureza preciosa da vida, sob qualquer forma que exista, por mais insignificante que a criatura possa parecer. Isto inspira na mente, de modo espontâneo, um sentido de cuidado, carinho e amor por todas as criaturas de Deus. Para mim, esta é a única razão para ser vegetariana.
 
Os métodos modernos de massacre de animais e produção de carne são tão abomináveis que mesmo uma pessoa sem motivos espirituais para tornar-se vegetariana deveria fazê-lo. Antigamente, quando as pessoas pensavam que precisavam comer carne, matavam o animal. Hoje, os animais são mortos em massa e depois se tenta criar um mercado. As pobres criaturas são mantidas em condições atrozes e antinaturais, miseravelmente confinadas, alimentadas e medicadas artificialmente, e maltratadas de muitas maneiras diferentes. É necessário um coração muito duro para ser um não-vegetariano – quando os fatos da produção de carne são conhecidos. Assim, a pergunta deveria ser na verdade “Como poderia eu não ser vegetariana?”. Se conhecesse as condições e mesmo assim me beneficiasse da dor dos animais criados para a produção de carne, eu seria muito pouco humana.
 
Milhões de pessoas na Índia têm sido vegetarianas por séculos e gerações e sempre com boa saúde – não só fisicamente, mas têm tido pleno poder mental e sabedoria espiritual. O território de ahimsa produziu naturalmente os videntes Upanishádicos, o Buddha, Mahavira, e uma série sem igual de místicos e homens santos, e por esta razão, mesmo agora, embora haja uma decadência perceptível, as pessoas olham para a Índia como a terra natal da espiritualidade. É interessante notar que muitas pessoas notáveis que experimentaram uma elevação mística – frequentemente chamada de expansão de consciência – tornaram-se naturalmente vegetarianas. Neste grupo estão pessoas como Shelley, Wagner e Charlotte Bronté, cujo background era contrário ao vegetarianismo, mas que o escolheram mesmo assim. Porque há uma relação direta entre o fato de não matar e a abertura da visão espiritual ou percepção religiosa. Alguns grandes religiosos como Ramalinga Swamigal expressaram dor até mesmo os verem plantas murcharem.
 
Isto era parte da verdadeira cultura e ethos [1] da Índia, e não o pensamento segundo o qual os animais não têm sentimento. Esta teoria cômoda é uma negação das evidências diretas que os animais dão dos seus sentimentos: a devoção e alegria expressadas quando retorna o dono, a dor e até as lágrimas quando machucados. Tudo isto é visível para toda pessoa que não fechar deliberadamente seus olhos. Como podemos negar ao animal o direito de viver que nós reivindicamos para nós, e a oportunidade de ser livre e feliz que vemos como nosso direito inalienável? Os animais também são filhos da força criativa universal, a mãe única de todos.
 
Acredito que o caminho para o bem-estar não está em promover a nossa própria satisfação às custas dos outros, ou em prolongar a nossa vida causando sofrimento a outras criaturas – seres humanos, animais, pássaros, ou outros. Cada agressão deve ser evitada sempre que possível; nenhum ferimento deve ser causado conscientemente a outro ser. Assim, a Lei da causa-e-efeito da Natureza, o Carma, trará por si mesma o que é bom. Pelo fato de hoje tantas pessoas violarem aquela Lei – há crescente dificuldade e sofrimento. É uma loucura pensar que deveríamos abandonar as verdades e o modo de vida que são parte da nossa antiga cultura e ethos, e aderir ao carnivorismo e outros hábitos para parecer modernos. Kalidasa disse: nem tudo que é antigo é necessariamente bom. E também nem tudo que é novo e moderno é necessariamente bom. A comprovação está nos resultados produzidos. O mundo moderno, cheio de violência e tensões, imoralidade e egoísmo, é o produto de ideias erradas.
 
Hoje algumas pessoas acreditam que ter um coração impiedoso em relação aos animais – e tratar milhões deles como se fossem objetos materiais inertes que podem ser abertos e manipulados numa fábrica produtora de carne – não tem qualquer efeito negativo sobre a sociedade humana, mas, ao contrário, a beneficia. Esta é uma gigantesca falácia. Porque os seres humanos que estão treinando-se a si mesmos para serem indiferentes ao sofrimento e brutais no seu modo de pensar irão agir, inevitavelmente, com grande insensibilidade em relação a sua própria espécie – que é o que estamos vendo atualmente. O modo gentil de viver, a simpatia e a sensibilidade para com o bem-estar de todas as criaturas, e uma capacidade de apreciar o caráter sagrado da vida, são necessários para construir uma civilização boa e pacífica.
 
NOTA:
 
[1] Ethos: Essência ou espírito de uma cultura. (CCA)
 
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O texto “Por Que Sou Vegetariana”, de Radha Burnier, foi publicado nos websites associados dia 21 de novembro de 2020. Escrito para o público indiano, o artigo foi divulgado inicialmente no “Indian Vegetarian Congress Quarterly”, edição de janeiro a março de 1992. A tradução é de Carlos Cardoso Aveline. A versão em português apareceu pela primeira vez no “Boletim CIBLA – Círculo Blavatsky”, editado pela Loja Dharma da ST de Adyar em Porto Alegre, Brasil, edição de setembro de 1992, pp. 11-12.
 
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Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”. 
 
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