Ciência, Humanismo e Ação Política
 
 
Gilberto Freyre
 
 
 
José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838)
 
 
 
Randolph Bourne criticou uma vez nos seus compatriotas o quase nenhum entusiasmo que punham no culto dos seus Edgar Poe, dos seus Whitman, dos seus artistas mais valorosos, enquanto se revelavam os maiores peritos do mundo no reclame de seus sabonetes, das suas Kodaks, dos seus automóveis. Crítica a meu ver muito exata.
 
Não se passará atualmente coisa semelhante, no Brasil, da parte dos brasileiros com relação a algumas das figuras em quem melhor tem se exprimido a inteligência criadora, a capacidade intelectual, a perícia artística, o tino político, o saber científico, a que pode elevar-se a nossa gente pelas suas expressões máximas de talento e de cultura, enquanto nas revistas, nos cartazes de rua, nos programas de rádio e televisão, no cinema, são anunciados, com uma técnica propagandística nada inferior à dos americanos dos Estados Unidos, os produtos alguns na verdade admiráveis da indústria brasileira, como certos remédios, certas bebidas, certos tecidos? É a situação que se apresenta aos olhos do observador da vida nacional, interessado em surpreender as diferentes ênfases que o brasileiro de hoje, através de técnicas de publicidade já bastante desenvolvidas entre nós, está pondo nos seus diversos valores nacionais, com grande vantagem dos apenas físicos, e imediatamente úteis, sobre os mais sutilmente intelectuais e os mais altamente éticos.
 
José Bonifácio, que talvez tenha sido o maior brasileiro de todos os tempos pelo que nele foi combinação de ciência com humanismo e de humanismo com ação política – ação política construtiva e animada de sentido social – é uma das vítimas do atual desdém dos brasileiros por valores nacionais que não sejam produtos de novas, vigorosas e triunfantes indústrias do País; nem correspondam a interesses apenas imediatos do desenvolvimento nacional. Nem sequer o fato de ser paulista – filho de um Estado, para o Brasil superindustrializado e fabricante de uma multidão de artigos valiosos cuja propaganda é realizada com notáveis engenhos e arte, e que facilmente poderia estender um pouco dessa propaganda ao grande valor humano que foi e continua a ser para o Brasil o Andrada de  Santos[1] – tem valido a José Bonifácio: figura imensa de estadista, de sábio, de homem de ciência cada vez mais na sombra entre seus compatriotas. É a São Paulo que mais cabe exaltá-lo como valor brasileiro de sempre. Pois foi São Paulo que o deu ao Brasil e à América.
 
Nunca foi mais necessário ao Brasil e à América do que nos dias difíceis que atravessamos o culto a José Bonifácio. Nunca. Pois ele representa para nós o principal idealizador e quanto possível construtor – construtor de bases – da grandeza brasileira, dentro do complexo americano; e essa grandeza como um todo, de tal amplitude, ao mesmo tempo diversificada e unificada que nenhuma outra nação, dentre as modernas, supera o Brasil neste particular.
 
O serviço que José Bonifácio prestou ao Brasil, dando à independência da Colônia de Portugal um sentido de todo diferente das independências das colônias da Espanha, foi imenso. Sua grandeza cresce com o tempo.
 
Haveria o Brasil, tal como existe hoje, tão plural e tão uno, se no momento justo não tivesse agido, máscula e decisivamente, sutil, e quase femininamente, juntando a arte dos grandes políticos à firmeza de ânimo dos grandes homens, contra os radicais da sua época, contra os desvairados “nacionalistas” do seu tempo, contra os furiosos antieuropeus dos seus dias, esse brasileiro tão da sua Província, e dentro da sua Província, tão do seu burgo sem que tais apegos o impedissem de considerar o futuro nacional,  considerando, em seu vasto conjunto, a nova pátria, por ele organizada?
 
Para assegurar-se a unidade desse conjunto, impunha-se a solução monárquica; e o sagaz Andrada, mais desdenhoso do que ninguém, de títulos e de comendas, foi a solução por que se bateu. Soube fugir à tentação das popularidades fáceis, entre os radicais mais ruidosos, que o cercavam: radicais então simplistamente republicanos, sem se aperceberem de que o seu simplismo ideológico de imitadores dos vizinhos da já fragmentada América Espanhola, era para o perigo que nos conduzia: o da fragmentação. O da desunião: brasileiros contra brasileiros. O do separatismo: em vez de um Brasil só, vários Brasis Estados. Uma América Portuguesa ainda mais dividida que a Espanhola em repúblicas inimigas umas das outras.
 
Houvesse educação cívica no Brasil de hoje, e o culto a José Bonifácio seria o maior culto nacional. Pois deveria haver no Brasil um dia de J. Bonifácio tão civicamente significativo como o dia da Independência ou o dia da Bandeira. Ou antes: o dia da Comemoração da Independência deveria ser principalmente no Brasil o dia de José Bonifácio.
 
Não se compreende que a sua vida não esteja dramatizada num filme que ao valor artístico juntasse o cívico e através do qual crianças, adolescentes, adultos se inteirassem do que houve de mais expressivo nessa vida de autêntico grande homem, tão a serviço do Brasil. Não se compreende que suas ideias, suas iniciativas, seus projetos inspirados num lúcido amor pela pátria que organizou sem repudiar Portugal, nem aguçar-se em detrator dos portugueses não sejam temas mais frequentes para composições escolares, teses universitárias, ensaios que as universidades, as academias, os institutos consagrassem com seus melhores lauréis. Tão pouco se compreende que o Itamarati deixe de projetar no estrangeiro figura tão completa de estadista, salientando-se, em publicações em várias línguas, ter sido o patriarca da Nação brasileira, como só depois dele o da República Chinesa, o da Tchecoslováquia, o da União Indiana, um homem de ciência, um humanista, um sábio, um “scholar”, embora, em dias difíceis, soldado. Mas como homem público eminentemente civil. Como homem público, a negação do caudilho. Também a negação, do politiqueiro, do demagogo, do adulador, quer de ricos, quer de multidões com sacrifício da “sã política”. Aquela “sã política” que só se sente comprometida com os grandes interesses gerais; nunca com os simplesmente privados ou de facção.
 
NOTA:
 
[1] José Bonifácio nasceu na cidade de Santos, SP, em 13 de junho de 1763. (CCA)
 
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O texto acima reúne dois artigos publicados no “Diário de Pernambuco” de 10 de janeiro de 1965 e 17 de janeiro de 1965 e no “Jornal do Comércio” (de Recife), nas mesmas datas, sob os títulos “A Propósito de José Bonifácio” e “Ainda a Propósito de José Bonifácio”. É aqui reproduzido do livro “Pessoas, Coisas & Animais”, de Gilberto Freyre, edição especial para MPM Propaganda, 1979, 244 páginas, ver  pp. 130-131. Título adotado neste livro: “Ciência, Humanismo e Ação Política: O Exemplo de José Bonifácio”. O volume consiste de ensaios e artigos reunidos e apresentados por Edson Nery da Fonseca, com exemplares numerados de 0001 a 8000, fora do comércio. Impressão: Círculo do Livro, SP.
 
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Veja em nossos websites associados os artigos “A História Secreta da Independência” e “O Manifesto da Independência do Brasil”.  
 
Na obra “Conversas na Biblioteca”, de Carlos Cardoso Aveline (Ed. Edifurb, 2007), veja o capítulo 13, intitulado “José Bonifácio, um Patriarca Polêmico”.
 
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Em 14 de setembro de 2016, depois de uma análise da situação do movimento esotérico internacional, um grupo de estudantes decidiu criar a Loja Independente de Teosofistas. Duas das prioridades da LIT são tirar lições práticas do passado e construir um futuro saudável.
 
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