As Lições Teosóficas de um Conto de Tolstoi
 
 
Joana Maria Ferreira de Pinho
 
 
 
Um peregrino russo no século 19: imagem mural, autor desconhecido
 
 
 
O Natal é uma época propícia para o cultivo do sentimento de fraternidade universal. O nascimento de Jesus simboliza o nascer da sabedoria, da humildade e da ajuda mútua nos corações humanos. O final do ano corresponde ao fortalecimento do Sol, da luz, da esperança. Nesta época há uma atmosfera mágica ao nosso redor.
 
No Natal grande parte da população recolhe-se ao seu lar e refugia-se no amor da família. A ceia, o convívio e a troca de presentes entre familiares e amigos simbolizam o que ocorre no plano da alma quando o ser humano nasce para a vida una.
 
A humanidade é uma grande família. No plano essencial da vida estamos o tempo todo convivendo com os outros seres humanos, mas também com os animais, as árvores e os astros. Estamos sempre doando e recebendo, mesmo que por vezes não tenhamos uma percepção disso. Há que saber doar e receber com sabedoria.
 
Pelo Natal são várias as iniciativas criadas por anônimos, e também por entidades públicas no sentido de ajudar famílias carenciadas, projetos que visam apoiar ideias nobres e ações que se propõem a amparar pessoas que de algum modo vivem de forma mais fragilizada.
 
O Natal tem uma relação estreita com a Páscoa. As quatro estações do ano correspondem às quatro grandes etapas de uma vida humana.[1] Natal e Páscoa despertam os aspectos mais nobres da alma humana.
 
Os Dois Anciãos
 
Tendo em conta estes fatos, vejamos o que diz o conto “Os Dois Anciãos”, de Tolstoi [2]. Trata-se da história de dois amigos russos, Eliseu e Efim, que como forma de cumprir uma promessa partem juntos em uma peregrinação até Jerusalém.
 
Quando estavam a atravessar a Ucrânia, Eliseu sentiu sede e combinou com o amigo Efim que ia pedir água em uma casa avistada ao longe. Efim prosseguiria viagem, e Eliseu alcançaria o companheiro mais adiante. Ao chegar à casa, porém, Eliseu deparou-se com uma família em um estado deplorável. A fome, a doença e a pobreza eram demasiado fortes para serem ignoradas.
 
Eliseu decidiu ajudar a família, e não se limitou a partilhar o pão que tinha consigo. Foi buscar água ao poço, comprou no povoado trigo, sal, farinha e manteiga. Cortou lenha e acendeu o forno. Cozinhou para a família e deu-lhes de comer. Com as forças parcialmente restabelecidas graças à refeição preparada por Eliseu, uma das mulheres da família contou-lhe como eles haviam chegado até aquele estado de miséria. Ouvindo os relatos, Eliseu decidiu que naquele dia não iria tratar de alcançar o companheiro. Começou a reunir alimento e objetos de trabalho. Neste esforço usou o dinheiro que tinha guardado para a peregrinação. E continuava preocupado com o futuro dessa família: via que não seria suficiente alimentá-los.
 
Passados quatro dias, Eliseu está num dilema. Ele deve partir dali o quanto antes para alcançar o amigo e chegar a Jerusalém. Mas ao mesmo tempo sente que precisa auxiliar aquelas pessoas. Tolstoi faz com que Eliseu diga as seguintes palavras:
 
“Senão, enquanto procuro Cristo no além-mar, acabo perdendo-o dentro de mim mesmo.”
 
É então que Eliseu vai até o ricaço da comunidade local e resgata a colheita e as terras de cultivo que a família tinha perdido. Compra ferramentas, farinha e um cavalo. Com isso obtém os meios de trabalho que permitirão à família manter uma vida digna.
 
Enquanto todos dormiam, Eliseu sai da casa com o objetivo de chegar a Jerusalém e encontrar lá o amigo. Porém, depois de ajudar a família ele já não tem dinheiro suficiente para fazer a viagem. Decide então regressar à sua terra. Quando chega a casa, guarda para si mesmo o bem que fez àquela família, sem dizer a ninguém como gastou o dinheiro.
 
Enquanto isso, Efim prosseguiu viagem e chegou até Jerusalém. Lá, junto com outros peregrinos, visita os locais considerados santos.
 
Em determinado momento, um peregrino tem o seu dinheiro roubado. Efim então começa a desconfiar que o peregrino está a mentir. Ele teme que o colega tenha inventado a história do roubo para que os peregrinos lhe deem dinheiro e partilhem com ele os bens que possuem.
 
Se a luta de Eliseu foi entre prosseguir viagem e ajudar uma família, Efim lutava contra os seus pensamentos de desconfiança e avareza. Pois, ainda que o peregrino fosse sincero e tivesse de fato sido roubado, Efim teria de ter cuidado para que não lhe acontecesse o mesmo. Com isso, o resto da sua estadia em Jerusalém esteve mais focada na sua segurança e na sua carteira do que nas coisas divinas.
 
Sem nada saber de Eliseu, Efim tinha esperança de encontrá-lo em Jerusalém. Pelo menos três vezes teve a impressão de que via Eliseu rezando no Santo Sepulcro, sob as lamparinas acesas com o fogo sagrado. Nas três vezes não conseguiu alcançar o homem que julgava ser Eliseu.
 
Após seis semanas de estadia em Jerusalém, Efim começa a viagem de regresso. Pelo caminho passa junto do povoado onde Eliseu parou para ir beber água e é convidado a entrar na casa da família que o amigo ajudou a se erguer. Foi aí que Efim ficou sabendo da obra que Eliseu havia realizado junto daquela família. Em seguida prosseguiu em direção a sua casa.
 
Após chegar à sua aldeia e rever a família, Efim vai ao encontro de Eliseu. Este pergunta se fez uma boa peregrinação, e ele responde:
 
“As pernas o fizeram (…). Só não sei se Deus aceitou o meu sacrifício (…). As pernas estiveram lá, mas não sei se o meu espírito esteve lá (…)”.
 
Efim quis falar com Eliseu sobre a família que este ajudara, mas Eliseu desviou o assunto. Efim então compreendeu – conta Tolstoi – “que nesta vida a melhor maneira de cumprir os votos de Deus e de realizar Sua vontade é viver com amor e fazer o bem ao próximo.”
 
A Sabedoria em Ação
 
Este conto tem mais do que uma lição. Tolstoi mostra que a verdadeira peregrinação é interna. Os lugares mais sagrados e os locais divinos estão dentro de nós, em nossos corações e na nossa consciência. E a forma de viver a mais elevada devoção é agir corretamente, ajudando aqueles que necessitam.
 
De nada adianta ir a locais considerados santos e sagrados se levarmos dentro de nós sentimentos mesquinhos e preocupações mundanas. Não é necessário caminhar até lugares distantes para ter contato com o que é divino. O divino está em nós e fora de nós. A elevação da alma não acontece como recompensa para aqueles que sacrificam seus pés e pernas. A elevação ocorre para aqueles que sacrificam o egoísmo e dedicam suas vidas a fazer o que é justo e nobre.
 
Sobre este conto, Carlos escreveu:
 
“Tolstoi mostra aqui a fragilidade dos planos humanos. É preciso adaptar os planos à realidade sempre mutável. Cabe responder às circunstâncias. O carma é interno e se desenvolve sobretudo conforme as intenções de cada um, e não só conforme as ações concretas do peregrino. As ações enfrentam dificuldades, mas a intenção é soberana. Para o peregrino cuja intenção nobre era mais profunda,  o carma abriu-se de modo renovador e inspirador.  Para o peregrino cuja intenção era menos profunda,  o carma desenvolveu-se com um sabor de dispersão e decepção.”
 
E ainda:
 
“Duas conclusões se impõem. Primeiro, devemos ter desapego em relação ao que pensamos que vai ocorrer, estando prontos para mudanças. Segundo, cabe ter metas profundas, que vão além da mera superfície dos fatos. Este tipo de meta permite que sejamos criativos.” [3]
 
A Necessidade de Compreender a Vida
 
Fica claro no conto “Os Dois Anciãos”: a compaixão consiste em ajudar aquele que sofre para que ele se erga. Mais necessário do que dar o pão que mata a fome é dar os instrumentos que permitem fabricá-lo. E essa é a missão da Loja Independente: alimentar os seres que necessitam compreender a vida, a lei, a reencarnação, o caminho do aprendizado. E fazer isso estimulando esforços independentes.
 
O humilde peregrino Eliseu ensina que o bem que fazemos aos outros é um bem que fazemos à nossa própria alma. Não importa se os outros sabem das obras sagradas que realizamos. O que importa é realizá-las. Elas não nos pertencem, mas nós pertencemos a elas.
 
NOTAS:
 
[1] Ver, por exemplo, o texto “A Magia do Final de Ano”, de Carlos Cardoso Aveline.
 
[2] No volume “Onde Existe Amor, Deus Aí Está”, uma coletânea de cinco contos de Tolstoi, Versus Editora, 2001, SP, Brasil, 124 páginas. 
 
[3] Carlos Cardoso Aveline, no estudo da Loja Independente sobre o conto “Os Dois Anciãos”, de Tolstoi, em dezembro de 2021.
 
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O texto “Viagem da Rússia Para Jerusalém” está disponível como item independente nos websites associados desde 22 de fevereiro de 2023. Ele foi o tema central de um estudo da Loja Independente de Teosofistas realizado em dezembro de 2021, e faz parte também da edição de dezembro de 2022 de “O Teosofista”, pp. 6-9.
 
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Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”.
 
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