Um Capítulo do Livro ‘Conversas na Biblioteca’
 
 
Carlos Cardoso Aveline
 
 
 
 
 
José Bonifácio de Andrada e Silva, nascido em São Paulo em 1763, foi muito mais que o patriarca da independência do Brasil. Escritor, espiritualista de destaque, cientista conhecido mundialmente, líder político, ele ajudou a formar a alma do povo brasileiro durante o período tempestuoso que vai desde 1820 até 1838, quando morreu.  
 
A independência do país, proclamada em 1822, foi liderada por Bonifácio e preparada, essencialmente, pelo movimento maçônico. Tanto José Bonifácio como Dom Pedro I eram maçons, e nisso acompanhavam grande parte da vanguarda intelectual daquele momento. Entre os “pedreiros livres”, os ideais generosos e humanitários andavam lado a lado com duras polêmicas, discordâncias e divisões.
 
Por ser monarquista, José Bonifácio era rival da principal organização maçônica da época, majoritariamente republicana e liderada por Joaquim Gonçalves Ledo. Por esse motivo, em alguns setores maçônicos, Bonifácio é considerado até hoje “o falso patriarca” da independência. Mais recentemente, historiadores maçônicos importantes, como José Castellani, fazem justiça a esse líder e pensador polêmico que abriu espaço para o surgimento de um grande país. [1] 
 
Graças a Bonifácio, a adoção da monarquia consolidou as instituições nacionais e impediu a fragmentação política do Brasil em países menores.  Mas Bonifácio tinha limitações. Embora fosse um grande estadista, o patriarca agia diante da realidade mundana com a impaciência e a inflexibilidade  típicas de uma personalidade voluntariosa, acostumada a uma vida retirada.  Sentindo-se incompreendido, ele explicou para si mesmo as perseguições que sofria, ao registrar em suas anotações pessoais:
 
“O homem superior à corrupção sempre desperta ódio no homem corrompido, e quem defende princípios justos e liberais, em filosofia ou em administração, se torna objeto de inquietação para as almas estreitas e sem energia.” [2]
 
José Bonifácio cometeu numerosos erros no período conturbado que vai de 1821 a 1838. Mas foi ele, sem dúvida, que formulou o primeiro projeto histórico coerente para o nosso país, um projeto que até hoje foi realizado apenas em parte. Ambientalista, Bonifácio escreveu longamente sobre a necessidade de preservar florestas e plantar árvores.  Pensador social, defendeu os direitos dos índios e dos negros e propôs oficialmente, na época da independência, que a escravidão fosse abolida em um prazo máximo de cinco anos.   A abolição só ocorreu em 1888. No plano econômico, José Bonifácio propunha uma reforma agrária que desse não só terra aos trabalhadores do campo, mas também apoio tecnológico para a sua produção. Não foi por acaso que José Bonifácio ficou pouco tempo no poder. O Brasil não estava pronto para sonhos tão ambiciosos. A seguir, um diálogo com os escritos desse pensador visionário.
 
1) Você vê o Brasil como um país destinado a viver conforme a lei da fraternidade universal e com plena liberdade religiosa?
 
Nós não reconhecemos diferenças nem distinções na família humana: serão tratados por nós como  brasileiros o chinês e o português, o egípcio e o haitiano, o adorador do Sol e o de Maomé.
 
2) Você foi um monarquista convicto e um administrador público que gostava de concentrar o poder em suas mãos.  Mesmo assim, parece ter uma visão radical da democracia. 
 
A maior parte dos países não deve o seu esplendor aos mais poderosos monarcas nem aos príncipes mais ricos, nem aos cidadãos governantes das nações.  A sua força e glória deve-se a simples cidadãos que fizeram admiráveis progressos nas artes, ciências, e ainda na arte de governar. Quem mediu a terra? Quem descobriu o sistema dos céus? Quem pôs em ação essas curiosas fábricas que vestem as nações? Quem investigou as profundezas da química, da anatomia, da botânica? Quem escreveu a história natural? Foram simples cidadãos. Aos olhos do sábio, eles devem eclipsar estes pretensiosos e grandes anões orgulhosos, que só se nutrem com a própria vaidade. 
 
3) Você tem uma visão ecológica das coisas, e sabe que desde a descoberta do Brasil até hoje o desmatamento tem sido uma prática constante.  Qual seu comentário a respeito? 
 
Destruir matos virgens, nos quais a natureza nos ofereceu com mão generosa as melhores e mais preciosas madeiras do mundo, além de muitos outros frutos dignos de estima especial, e isso sem motivo, como até agora se tem praticado no Brasil, é uma extravagância insuportável, um crime horrendo, e grande insulto feito à natureza.
 
Que defesa apresentaremos no tribunal da razão, quando os nossos netos nos acusarem de fatos tão graves? Nós mesmos já reclamamos com justificada razão dos crimes cometidos a esse respeito no passado. 
 
4) Você acredita em Deus?   
 
A contemplação do universo e o amor pelo seu criador; essa é a minha religião.
 
O Deus do filósofo não é o Deus de convívio do povo comum, nem é o tirano asiático dos devotos azedos.
 
“Reflete, não creias sem buscar as causas, mede, compara e conclui” – esses são os princípios básicos de toda a filosofia. 
 
5) O desenvolvimento da vontade pessoal é importante  para o fortalecimento da  alma?
 
A vontade é a verdadeira força primordial do universo, que só pode morar nos grandes espíritos. Querer, querer outra vez, e querer sempre é o atributo das grandes almas e da verdadeira masculinidade. A razão deve ficar entre essa vontade e os apetites, e tudo que há de sublime neste mundo humano depende da sua afinidade, coordenação e subordinação recíprocas.  
 
6) Você é conhecido por questionar a religiosidade convencional. Também é considerado um pensador anticlerical.  A partir das suas observações na primeira metade do século 19, como vê o cristianismo brasileiro?  
 
O cristianismo é a religião do outro mundo. Os hipócritas e ambiciosos estão seguros com os devotos que se lhe devem sujeitar e obedecer. Igualmente seguros estão os usurpadores.
 
No uso das religiões, quanto mais se cuida do dogma, menos se cuida da moral; e quanto mais complicados e extensos os dogmas, menos pureza nos costumes; porque o conhecimento e a defesa dos mistérios deixa pouco tempo para cuidar da moral.  Quando as luzes começam a raiar em qualquer povo, então enfraquece a religião.
 
Os melhores cristãos tremem no momento de morrer; os filósofos deixam a vida tranquilamente.
 
O clero, quando não pode ser amo, é escravo dos reis.
 
A religião que convida à ociosidade e faz do celibato uma virtude é uma planta venenosa no Brasil. Além disso, o catolicismo convém mais a um governo despótico do que a um governo constitucional. 
 
7) Estudando sua vida, tem-se a impressão de que você nem sempre foi, digamos,  “politicamente correto”. Por que costumava ser tão franco, mesmo tendo tamanha responsabilidade política?
 
A liberdade é um bem que não se deve perder senão com o sangue. Não é senhor de si quem submeteu a outrem a sua língua. Um só homem que queira e saiba falar a tempo faz calar e tremer a muitos, e pode ser a defesa de um povo inteiro, que o silêncio colocaria a perder. A verdade, quando fica muda, introduz a tirania. 
 
8) Qual é, então, o segredo para vencer os desafios que o nosso país  enfrenta? 
 
No Brasil, a virtude, quando existe, é heroica, porque tem que lutar contra a opinião pública e o governo.
 
Age sobre a imaginação dos brasileiros – e os governarás para o bem.
 
NOTAS:
 
[1] Veja por exemplo o livro acusador “José Bonifácio, o Falso Patriarca”, de A. Tenório d’Albuquerque, Ed. Aurora, RJ, 183 pp., que circula especialmente em meios maçônicos.  Em defesa de José Bonifácio, destacam-se os bem documentados livros do historiador maçônico José Castellani. Entre eles, “José Bonifácio, um Líder Além do seu Tempo”, Ed. A Gazeta Maçônica, SP, 183 pp.
 
[2] “Obra Política de José Bonifácio”, coletânea organizada por Octaviano Nogueira, Senado Federal, Brasília, 1973, 339 pp., ver p. 118.
 
Nota Bibliográfica:
 
Fontes das respostas: 1)Projetos Para o Brasil, José Bonifácio de Andrada e Silva, obra organizada por Miriam Dolhnikoff, Cia. das Letras, SP, 1998, 371 pp., ver p. 176; 2)Projetos Para o Brasil, obra citada, mesma p. 176; 3)Obra Política de José Bonifácio, obra citada, p. 42; 4)Projetos Para o Brasil, obra citada, pp. 324 e 313; 5)Projetos Para o Brasil, obra citada, p. 305; 6)Projetos Para o Brasil, obra citada, pp. 324, 322 e 323; 7)Projetos Para o Brasil, obra citada, p. 255; 8)Projetos Para o Brasil, obra citada, p. 190.
 
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O texto  “José Bonifácio, um Patriarca Polêmico”  está disponível nos websites associados desde o dia 31 de agosto de 2022. O artigo faz parte da obra “Conversas na Biblioteca, um diálogo de 25 séculos”, de Carlos Cardoso Aveline, Editora Edifurb, Blumenau, Santa Catarina, Brasil, 2007, 170 pp., ver pp. 81-85.  
 
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Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”. 
 
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