A Dor Pode Ser Mais Eficaz que
a Alegria Como Meio de Educação
 
 
Paul Carton
 
 
 
 
 
Como tudo o que existe, a vida humana é regida por princípios superiores que querem a sua progressiva ascensão, e por leis de conduta que lhe guiam as etapas.
 
A vida humana não tem outro fim senão realizar a inteligência e a prática destas leis naturais e sobrenaturais [1], a fim de o indivíduo elevar-se acima das necessidades instintivas, renunciar aos prazeres inferiores da matéria e tornar-se uma potência espiritual, apto a viver a vida celeste.
 
É para atingir este fim de alegria inimaginável que Deus [2] criou o homem, o obrigou a lutar para se engrandecer, a sofrer passageiramente para escolher e querer o bem, a recomeçar muitas vezes a experiência, para o querer claramente e de boa vontade e enfim para merecer gozá-lo numa felicidade eterna.
 
A dor cumpre pois verdadeira missão. Educa e protege avisando do perigo, porque este é sempre o resultado duma falsa direção, duma ignorância ou duma revolta. Purifica fazendo expiar. Engrandece aguilhoando e desmaterializando. Recompensa obrigando providencialmente ao mérito. Ensina, corrige e eleva.
 
Sofre-se por ignorância? Por que nos surpreendemos? Nada se aprende sem custo.
 
O sofrimento aclara. Assim, o sofrimento é o preço da educação, como o esforço é o salário da instrução.
 
Por outro lado, o sofrimento avisa e protege. Faz-nos desviar da chama que queima, do ser mau que fere, da desordem moral que tortura o corpo e o espírito.
 
Em que se tornaria o homem se não tivesse encontrado no seu caminho o aviso e o freio da dor? Teria certamente destruído o seu corpo, gasto a sua vida e perdido a sua alma, em muito pouco tempo.
 
O sofrimento tem ainda o papel de sanção e serve assim de meio de purificação e de elevação. Pune os desvios de regime e de conduta. Castiga cedo ou tarde o comilão, o porco, o preguiçoso, o revoltado, o orgulhoso, o egoísta, o ladrão, o estroina, o imoral. Assim se torna a polícia da Providência. A sanção que parece não existir porque tarda, mais severa será.
 
A que parece injusta, parece-o porque não se sabe distinguir as razões afastadas ou ocultas. Uma desgraça ou uma morte não sobrevém nunca sem razões evidentes ou ocultas. Quer constituam castigo, prova ou sacrifício, o fato é que esclarecem e elevam os que os aceitam com Fé. Tais acontecimentos são dirigidos em última instância pela Providência que tudo situa, encadeia, compensa e repara, com vistas ao progresso espiritual.
 
Em medicina, a doença aparece para esclarecer as falhas de regime e de higiene, para as fazer expiar, para obrigar à purificação orgânica, à reflexão mental, à procura e à prática da vida pura e sã.
 
Compreendendo a Origem das Catástrofes
 
Todas as vezes, pois, que o homem tem a inteligência e a sabedoria de seguir a lei natural e a lei sobrenatural [3] é forçosamente o equilíbrio e a harmonia que reinam no seu organismo.
 
E se os agrupamentos humanos se curvam a estas mesmas obrigações, a saúde, a ordem e a paz manifestam-se nas comunidades (famílias e nações), ao mesmo tempo que o ambiente natural se torna favorável para o seu desenvolvimento. Mas, pelo contrário, todas as vezes que o homem se desvia da lei e a transgride, um aviso doloroso se declara primeiramente leve (simples incômodos), depois mais sério (afecção aguda), para o obrigar a refletir e a corrigir-se.
 
Se ele teima ainda em não querer compreender e escolher melhor o seu caminho, deverá expiar sob formas cada vez mais severas a sua obstinação no pecado. Os avisos sucessivos se produzirão com intensidade proporcional à gravidade das faltas cometidas; traduzir-se-ão por catástrofes pessoais, familiares ou coletivas (afecções crônicas; ruínas; epidemias; fome; guerra), até os homens chegarem ao arrependimento, confessarem as suas faltas, humilharem-se e corrigirem-se. Então, quando conquistarem a clarividência do bem e do mal, expiarem a sua má vontade e adquirirem mérito pelo esforço do justo governo de si próprio, Deus acalma-se, desconta mesmo uma parte das dívidas e perdoa; porque, na sua infinita misericórdia só tem um desejo: o progresso e não a destruição da humanidade.
 
A Lei Universal
 
Estes resultados felizes ou desgraçados que resultam da submissão ou da desobediência às leis da vida humana estão expostos na Escritura em termos surpreendentes:
 
“Se seguirdes as minhas leis, se respeitardes os meus mandamentos e os puserdes em prática, enviar-vos-ei chuvas na estação própria, a terra produzirá e as árvores dos campos darão os seus frutos. Comereis pão com fartura e habitareis o vosso país com segurança! …… Farei desaparecer os animais ferozes e a espada não passará pelo vosso país …… Tornar-vos-ei fecundos e multiplicar-vos-ei, e manterei convosco a minha aliança.”
 
“Mas se não me escutardes e não puserdes em prática todos estes mandamentos, se desprezardes as minhas leis …… eis o que farei: Farei cair sobre vós o terror, a consunção e a febre que tornarão o vosso olhar mortiço e a vossa alma sofredora: e semeareis em vão as vossas sementes; os vossos inimigos as devorarão ……”.
 
“Se, apesar disso, não me escutardes ainda, castigar-vos-ei sete vezes mais pelos vossos pecados. Quebrarei o orgulho da vossa força; transformarei o vosso céu em ferro, e a vossa terra em cobre. A vossa força esgotar-se-á inutilmente, a vossa terra não dará os seus produtos, e as árvores da terra não darão os seus frutos ……”.
 
“Se estes castigos não vos corrigirem ainda e se me resistirdes, eu vos resistirei também e vos ferirei sete vezes mais pelos vossos pecados. Farei cair sobre vós a espada que vingará a minha aliança; quando vos juntardes nas vossas cidades, enviar-vos-ei a peste para o meio de vós e sereis entregues às mãos do inimigo. Quando vos enviar a fome, dez mulheres cozerão o vosso pão num único forno e vo-lo entregarão a peso; comereis e ficareis com fome ……”
 
“Se apesar disso, ainda não me escutardes e se me resistirdes, eu vos resistirei também com furor e castigar-vos-ei sete vezes mais pelos vossos pecados. Comerei a carne de vossos filhos …… Reduzirei as vossas cidades a desertos …… Espalhar-vos-ei pelas nações. O vosso país será devastado …… Aqueles dentre vós que sobreviverem serão feridos de apatia pelas suas iniquidades …… Confessá-las-ão e confessarão as iniquidades de seus pais, as transgressões que cometeram para comigo, e a resistência que me opuseram. E então o seu coração não circuncidado humilhar-se-á e eles pagarão a dívida das suas iniquidades…… Mas, mesmo assim, quando estiverem no país dos seus inimigos, eu não os rejeitarei e não os conservarei em horror até os exterminar, até romper a minha aliança com eles, porque eu sou o Eterno, o seu Deus” (Levítico XXVI, 3 a 45).
 
O sofrimento aparece pois, aqui, como um meio de educação mais eficaz do que a alegria. Em geral, constitui mesmo o mais poderoso estimulante do progresso individual, porque coloca o homem em face de si mesmo, e dá-lhe o justo conhecimento da sua fraqueza, da sua inconsciência, do seu desvario, da sua impotência para se conduzir ao arbítrio do seu único bel-prazer, e a dirigir-se sem o socorro de Deus.
 
Ensina-lhe a vaidade dos bens deste mundo, a fragilidade do seu corpo, as insuficiências da sua ciência, os erros da sua vontade. Atormenta-o duramente em tudo o que deve suprimir, isto é, no seu orgulho e na sua sensualidade.
 
Fere-lhe o coração e os sentidos, porque “pelas coisas em que alguém peca, por estas é também atormentado” (Sabedoria, XI, 17). Fatiga o corpo para que o espírito chegue à clarividência, se abra à caridade, se desprenda pouco a pouco da matéria e viva verdadeiramente.
 
O homem tem necessidade de sofrimento, porque é um solo ingrato e duro, no qual nada pode ser semeado nem sustentar frutos, enquanto a relha do arado do sofrimento não o tiver rasgado mais que uma vez. “Que sabe aquele que não foi tentado?” (Eclesiástico, XXXIV, 9.) Com efeito, é quase sempre na ocasião duma doença orgânica ou duma aflição moral que se estabelecem no homem as reformas libertadoras e as renovações espirituais. Assim, é nesse sentido que deve entender-se a expressão de Santa Hildegarda: “Deus não habita os corpos que passam bem!”
 
É no doloroso parto das provações e das tribulações que se criam as obras humanas mais puras e mais duradouras.
 
Sob o império dos prazeres baixos, o homem degrada-se. Seu rosto cobre-se com a máscara animal. Recai na vida bestial. Chega à doença e ao crime. Sob o aguilhão repetido do sofrimento, o homem chega a levantar-se e a espiritualizar-se.
 
O seu rosto burila-se e idealiza-se então. Graças a ele, aprende a conhecer os horrores do mal para dele se desviar para sempre, compreende a doçura dos alívios da caridade e a eficácia dos atos de sacrifício.
 
É o sofrimento, na verdade, que nos dá a chave dos mistérios da vida, mostrando a necessidade do abandono das paixões materiais, de maneira que o velho homem desapareça e se estabeleça o reino do homem espiritual. É por ele que se obtém a transmutação do vil metal em ouro puro. É graças a ele que se efetua o renunciamento à parte inferior, animal e perecível, e que se estabelece o triunfo da parte sobrenatural, da espiritualidade, no homem.
 
Mas, para chegar a este grau de vidência e a este resultado elevado, é preciso etapas. O homem, como a criancinha, deve cair muitas vezes, antes de saber segurar-se de pé e andar. Não pode apreciar a saúde senão depois de ter conhecido a doença. Não pode sentir a imensa alegria duma vida sã e pura, senão depois de ter percebido e sondado os abismos da ignorância e da desobediência. Cada provação exerce-se como um julgamento que separa o puro do impuro, como uma morte que se declara em vista dum renascimento. E é somente a seguir a renúncias sucessivas que as asas espirituais se desenvolvem e que o homem pode voar na claridade do Céu.
 
O sofrimento é, pois, verdadeiramente providencial.
 
E, para aqueles que o aceitam com boa vontade e se servem dele como dum meio de educação, sem se revoltar por isso nem o escamotear, ele é bendito. Desgraça é, com efeito, para aquele que o odeia e julga libertar-se dele por meio de calmantes, sem estudar as causas em si mesmo e sem chegar às fontes reais do mal: o orgulho e a sensualidade.
 
Por esta forma só chega a deslocar a dor e não a afasta um momento, senão para a ver voltar ao ponto de partida, com intensidade duplicada.
 
Mas, pelo contrário, grande é a recompensa para aqueles que o acolhem como aviso, que renunciam às suas causas, que o utilizam para se aperfeiçoarem e se reconstruírem.
 
Estes deixarão o império da Dor. O seu justo esforço de compreensão e de constrangimento receberá a sua recompensa. “Semearam em lágrimas, colherão com alegria”. (Salmo 126: 5)
 
Quando descobrimos o poder de transformação e de elevação que se oculta sob a rude capa da dor, não mais nos admiramos ao ler que os santos reclamavam como um favor do Céu a concessão de novos sofrimentos, desde que cessavam de sentir o aguilhão benéfico da dor, porque receavam recair na indolência ou na secura do coração.
 
NOTAS:
 
[1] Leis sobrenaturais, isto é, leis espirituais. Em teosofia, porém, considera-se que o plano espiritual faz parte da natureza. Portanto, suas leis são naturais e não sobrenaturais. Prakriti, a natureza, tem sete formas ou sete princípios, sete níveis de consciência. Veja a obra “The Secret Doctrine, de Helena Blavatsky, volume I, p. 373, inclusive as notas de rodapé. (CCA)
 
[2] “Deus”, isto é, a Lei Universal. A figura antropomórfica de Deus como um pai pessoal, um patriarca humanoide simultaneamente bondoso e rigoroso, é um instrumento simbólico popular, porém provoca simplificações excessivas na visão que temos das inteligências cósmicas. (CCA)
 
[3] Lei “sobrenatural” – os níveis superiores e sutis da Lei do Carma. (CCA)
 
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O texto acima foi publicado nos websites associados no dia 28 de abril de 2021.
 
As Lições Que o Sofrimento Ensina” é reproduzido do livro “Bem-Aventurados os que Sofrem”, de Paul Carton, publicado em 1953 por Organização Simões, Rio de Janeiro, 130 páginas. Ver pp. 19-30. A primeira edição francesa da obra é de 1923. Na transcrição, em alguns poucos casos, substituímos expressões pouco inteligíveis por termos da linguagem corrente no século 21. (CCA)
 
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Leia mais:
 
 
 
 
* “As Horas Difíceis”. 
 
Clique para ver outros textos (e livros) de Paul Carton.
 
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