O País Começou a Ser Construído Pelos
Portugueses Algumas Décadas Depois de 1500
 
 
Metzner Leone
 
 
 
Nota portuguesa de mil escudos em homenagem a
Pedro Álvares Cabral,  com data de 12 de março de 1998
 
 
 
O título e o assunto deste artigo pertencem a uma das apostilas que ditei aos meus alunos de História de Portugal, quando lecionei aquela matéria no Ginásio Sagres.[1]
 
Lembro ainda a perturbação que o título dessa nota provocou entre as moças e os rapazes da quarta série ginasial:
 
Fêssor, o senhor não é português? – perguntou uma aluna, admiradíssima com o tópico que eu acabara de ditar.
 
Lá ao fundo da aula, um aluno disse para outro:
 
– Eu não falei?… Não foi o Cabral, não; foi o Pinzon, um espanhol…
 
Tive então necessidade de esclarecer que não ditara: “Não foi Cabral quem descobriu o Brasil”, mas sim: “Cabral não descobriu o Brasil” – o que, parecendo a mesma coisa, podia ser coisa diferente. E era. E o que ditei aos meus alunos do Ginásio Sagres foi mais ou menos isto que vou escrever agora:
 
Os portugueses descobriram as ilhas do Atlântico, descobriram o caminho marítimo para a Índia, descobriram muitas outras terras – pelo mesmo motivo que os garimpeiros ainda hoje descobrem um diamante dentro da sua peneira; porque tudo preexistia ao ato da descoberta. Quer dizer: as ilhas já estavam lá, naquele lugar do Atlântico onde os portugueses as encontraram; o caminho marítimo para a Índia já existia contornando o continente africano, quando o Gama o singrou – e o diamante já estava na peneira do garimpeiro quando ali foi encontrado por ele. Para que algo possa ser descoberto, é necessário que já exista antes, encoberto.
 
Ora, Cabral não descobriu o Brasil pela boa razão de que o Brasil não existia quando a Armada do almirante português aqui aportou, no ano de 1500. E se, então, não existia o Brasil – nem esse que aí está, nem nenhum outro – não pode ser correto dizer-se que Cabral descobriu um país que não havia.
 
Aquilo que os portugueses descobriram em 1500 foi parte da orla atlântica do continente sul-americano, à qual chamaram Terras de Santa Cruz. Isto é que constitui a descoberta, porque essa orla atlântica do continente sul-americano é que já existia aqui, quando os portugueses aqui chegaram. Mas o Brasil é uma criação portuguesa na América do Sul, posterior em algumas décadas ao descobrimento das Terras de Santa Cruz.
 
Essas Terras de Santa Cruz não têm nenhuma outra relação com o Brasil atual, além de terem sido o lugar onde os portugueses criaram sucessivamente a colônia Brasil, o Estado Brasil, o Reino Unido do Brasil, e, finalmente, o Brasil Império, de onde saiu esta portentosa Nação que aí está.
 
E por quê considero essencial esta lição? E por que me parece que deveria ser ministrada em todos os cursos primários, secundários, colegiais e universitários?  E até nos cursos de alfabetização de adultos… Por um motivo bem simples, que representa o fulcro do dramático equívoco cultural brasileiro, no que respeita à formação e constituição deste país e do seu povo. A grande maioria dos autores brasileiros faz uma deliberada confusão entre naturalidade e nacionalidade. Até o dia 7 de setembro de 1822, ser brasileiro era como ainda hoje [2] é ser angolano, moçambicano, minhoto ou alentejano.
 
Ser Brasileiro era apenas a naturalidade de uns certos portugueses: daqueles que tinham nascido na América portuguesa, que se chamava Brasil. Ser brasileiro só passa a ser nacionalidade, em diferenciação a ser português, depois que o Brasil adquiriu a sua categoria de Nação independente e soberana: depois de 7 de Setembro de 1822.
 
Mas, da confusão mencionada entre naturalidade e nacionalidade, comum em todos os autores brasileiros, o que resulta, afinal, para o espírito do estudante deste País?  Apenas isto: como hoje, o português é um estrangeiro no Brasil, tal como acontece ao inglês, ao americano, francês ou ao alemão; e como a criança não tem uma noção exata nem da pré-história nem da proto-história brasileiras, e lhe “ensinam” que os portugueses – esses estrangeiros que aí estão, donos de botequins e açougues – vieram aqui “descobriram o Brasil, mataram os nossos índios, trouxeram escravos negros, e levaram para Portugal o ouro e as pedrarias das minas brasileiras” – como é isto que a criança “aprende”, ela desde logo sente uma ojeriza contra o português, que não sente nem pelo inglês, americano, francês ou alemão, pois nenhum destes veio aqui ao Brasil fazer aquelas tropelias…
 
Por isso me parece imperioso esclarecer de uma vez que Cabral não descobriu o Brasil. Que os portugueses descobriram as Terras de Santa Cruz, e nelas fundaram e desenvolveram o Brasil, como parte integrante que sempre foi da Nação portuguesa, até 7 de setembro de 1822.
 
Assim é que as coisas se passaram, já que tudo o que Cabral aqui encontrou foram índios nus, areais de costa e embocaduras de rios, florestas virgens infestadas de insetos e feras. Ora ninguém pode chamar a isso… Brasil! Nem mesmo o mais “nacionalista” dos intelectuais brasileiros…
 
A carta de Caminha ao Rei de Portugal não pode ser considerada como certidão de batismo do Brasil – já que nem a tal nome se refere, nem poderia referir-se, porque o Brasil ainda não existia – mas sim, e apenas, como a descrição do local onde os portugueses, depois, começaram a criar o Brasil, com Tomé de Souza, Martim Afonso e Estácio de Sá.
 
Desta retificação ao tom geral do ensino da História que se faz neste país, logo resulta que o português já não poderá mais continuar sendo considerado, nem subconscientemente, como invasor do Brasil, como dominador do Brasil. Realmente, nunca o foi. Foi até o contrário, já que lutou contra todos os invasores do Brasil, contra todos os que pretenderam dominá-lo: os franceses protestantes, os holandeses protestantes e os ingleses protestantes. E o povo brasileiro aí está todo ele portuguesmente católico, desde o Amazonas ao Prata, e todo ele falando o idioma do povo que criou o Brasil, da colônia incipiente de capitanias feudais até Reino Unido – até à eclosão da própria independência nacional brasileira, a qual nunca teria sido possível na escala de grandeza atual se a Inconfidência Mineira ou a Revolta Pernambucana não tivessem sido sufocadas. O êxito de Tiradentes ou dos revoltosos pernambucanos, teria diversificado a América portuguesa, e teria feito dela – do Brasil – a mesma manta de retalhos em que se transformou a América espanhola.
 
Sejamos nós, portugueses, os primeiros a proclamar perante os brasileiros esta verdade fundamental de que Cabral não descobriu o Brasil – para que nenhuma subcultura inesclarecida possa encontrar nessa expressão, só aparentemente verdadeira, o ponto de partida inicial para toda uma obra de jacobinismo que está errada de ponta a ponta, como não podia deixar de estar, já que parte de uma premissa falsa: a descoberta do Brasil pelos portugueses. Se o Brasil não existia em 1500, não poderia ele, então, ter sido descoberto por ninguém.
 
É que a expressão corrente da descoberta portuguesa do Brasil cria na criança essa noção subconsciente de uma pré-existência brasileira, em relação ao ato do descobrimento. E esse totalmente inventado Brasil pré-cabralino até tinha já o seu povo, que eram os índios, os quais teriam sido os primeiros “brasileiros”, o que é outro erro de palmatória: se o Brasil foi uma criação portuguesa na América, nunca poderia ter como primeiros naturais as tribos que já aqui viviam antes da chegada desses portugueses. Os primeiros brasileiros, realmente, só podem ser assinalados no tronco de origem dos paulistas de quatrocentos anos: os filhos de João Ramalho, nascidos no planalto de Piratininga, que foram o alfobre dos bandeirantes.
 
Assim, desfeita a hipótese subconsciente de um Brasil pré-cabralino, logo o problema da naturalidade e da nacionalidade brasileira e portuguesa perde a acuidade que ainda hoje tem. Tiradentes era português, como eram portugueses todos os Inconfidentes, como eram portugueses, afinal, todos os brasileiros. E sempre assim foi, e nunca assim deixou de ser, até 7 de setembro de 1822. Portanto, o processo e a sentença dos Inconfidentes não podem ser apresentados como violência da Justiça portuguesa contra estrangeiros – até porque se tratou de castigar um levante de portugueses contra a unidade da sua própria Nação.
 
O portuguesismo dos brasileiros era tão acentuado e tão evidente, que a maior festa carioca – hoje, admirada em todo o mundo: o Carnaval do Rio de Janeiro – resultou da explosão de patriotismo português da população desta cidade, quando aqui chegou a notícia da Restauração da Independência de Portugal contra a Espanha, ocorrida na revolta de Lisboa, em 1 de dezembro de 1640.
 
A notícia chegou ao Rio em princípios de fevereiro, e o governador da cidade promoveu grandes festejos comemorativos da boa nova. A esses festejos se associou entusiasticamente toda a população carioca, em fevereiro de 1641, quando verdadeiramente nasceu o Carnaval do Rio de Janeiro. Que ainda hoje, século e meio depois da proclamação da Independência brasileira, é a maior festa popular do Brasil. E é por isto mesmo que as “fantasias” das Escolas de Samba são todas inspiradas no vestuário fidalgo daquela época: trata-se de glorificar os conjurados de 1640.
 
E por quê tudo isto é assim mesmo, como estou escrevendo para os leitores deste jornal?
 
Exatamente porque não foi o Brasil que Cabral descobriu na América do Sul, mas sim as Terras de Santa Cruz – lugar onde, depois, os portugueses criaram, fomentaram, defenderam, dilataram e preservaram este imenso e grandioso Brasil que aí está. Este Brasil que tem no seu gigantismo e nas qualidades naturais do seu povo, os maiores pilares da sua evolução para o futuro; e que tem nos seus professores e intelectuais jacobinos, os seus piores e mais poderosos inimigos.
 
(Portugal em Foco, edição de 21 fevereiro 1964)
 
NOTAS:
 
[1] O Colégio Sagres é um tradicional estabelecimento de ensino no Rio de Janeiro, fundado em 6 de janeiro de 1938. (CCA)
 
[2] “Hoje” – isto é, quando o artigo foi escrito, em 1964, antes da independência de Angola e Moçambique. (CCA)
 
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O artigo “Cabral Não Descobriu o Brasil” foi incluído no acervo dos websites associados dia 20 de abril de 2020. Reproduzido da obra “Um Português no Brasil”, de Metzner Leone (1914-1987). O livro é uma publicação da Agência-Geral do Ultramar, Lisboa, com data de 1969, e tem 261 páginas. Ver as páginas 186-191.
 
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Clique para ver o livro “Pedro Álvares Cabral”, de Metzner Leone.
 
Leia o artigo “A Arte de Descobrir o Brasil”, de Carlos Cardoso Aveline.
 
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